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08/07/2008

No DNA do vetor, cientistas buscam formas para controlar a leishmaniose

Marcelo Garcia


Uma pesquisa feita no Instituto Oswaldo Cruz (IOC) estudou pela primeira vez em nível molecular o processo envolvido na digestão de sangue pela fêmea do flebotomíneo Lutzomyia longipalpis, principal vetor da leishmaniose visceral no Brasil. O estudo identificou tripsinas fundamentais no processo digestivo. Os resultados ajudam a entender os mecanismos envolvidos na sobrevivência do parasito no intestino do vetor e podem colaborar na busca de formas para interferir no ciclo de transmissão da doença.


 Os pesquisadores avaliaram a produção de tripsinas, substâncias que podem ter papel fundamental na contaminação do inseto pelo parasito causador da leishmaniose

Os pesquisadores avaliaram a produção de tripsinas, substâncias que podem ter papel fundamental na contaminação do inseto pelo parasito causador da leishmaniose


O estudo dos pesquisadores do Laboratório de Biologia Molecular de Tripanossomatídeos e Flebotomíneos do IOC investigou os genes codificadores das tripsinas Lltryp1 e Lltryp2 do tubo digestivo do flebotomíneo. “As tripsinas são enzimas comuns em processos digestivos, especializadas em clivar outras proteínas”, afirma o aluno de doutorado em biologia celular e molecular Erich Telleria, sob orientação da pesquisadora Yara Traub-Csekö, e um dos responsáveis pela pesquisa. “Descobertas recentes, no entanto, mostram que a ação delas também pode influenciar a sobrevivência de parasitos no intestino dos insetos”, completa. O trabalho é uma das linhas de pesquisa desenvolvidas no laboratório, que há cerca de sete anos estuda o L. longipalpis.


Para entender melhor os processos de digestão do sangue e sobrevivência do parasito, os especialistas do IOC analisaram a produção das duas tripsinas durante o processo de digestão do sangue. “A síntese de qualquer proteína passa, primeiro, pela transcrição de seu DNA em RNA mensageiro (mRNA) e, depois, pela tradução do mRNA na seqüência de aminoácidos que vai compor a proteína”, esclarece o veterinário. “Analisamos a primeira parte desse processo: a produção de mRNA”.


Os experimentos utilizaram insetos antes de se alimentarem e em intervalos determinados de tempo após a ingestão do sangue. Os exemplares foram submetidos a análise através da técnica de RT-PCR (transcrição reversa seguido de PCR), que permite obter dados sobre o mRNA da amostra processada. “A técnica nos permite multiplicar a quantidade de moléculas produzidas, para que possamos quantificá-las”, explica o pesquisador. “Como amplifica apenas o mRNA, serve para indicar quais genes foram efetivamente transcritos naquele momento”.


As duas enzimas apresentaram resultados bastante diferentes. A transcrição da Lltryp1 não foi registrada antes da alimentação, mas aumentou nas horas subseqüentes, com um pico 12 horas após o início de experimento, e esteve presente até 72 horas após a ingestão de sangue. A Lltryp2, por sua vez, já era transcrita antes da alimentação e praticamente não se alterou durante todo o processo. “Por esses resultados e por comparações entre essas tripsinas e outras já conhecidas de diversas espécies de insetos, podemos dizer que a Lltryp1 é o que chamamos de tripsina tardia, ou seja, só é transcrita durante a digestão do sangue”, analisa Erich. “A Lltryp2 pode ser considerada o que se conhece como tripsina inicial ou constitutiva, que não é influenciada pela alimentação, devendo atuar em outros processos no organismo do flebotomíneo”.


Testes complementares mostraram também a presença da Lltryp2 em machos, que não se alimentam de sangue; nos estágios larvares, quando existe intensa atividade digestiva, mas sem o consumo de sangue; e de pupa, quando praticamente não há alimentação. A Lltryp1 não foi encontrada em nenhum desses casos. “Isso é mais um indício de que a transcrição da Lltyrp1 está diretamente relacionada à digestão e que a Lltryp2 deve participar de outros processos metabólicos”, analisa o especialista. Os pesquisadores realizaram, ainda, experiências com sangue infectado por Leishmania infantum chagasi, parasita comumente relacionado à leishmaniose visceral. “Comparamos a transcrição das duas proteínas 72 horas depois da ingestão de sangue puro e com o parasito, quando a leishmania interage diretamente com o tubo digestivo do inseto”, explica o médico veterinário. “Mas os resultados não mostraram diferenças entre os dois testes”.


Erich ressalta que estes resultados referem-se apenas a dados sobre a transcrição dos genes das enzimas, e não sobre sua expressão. “Nossos dados preliminares indicam que há maior expressão de tripsinas em 12 horas após a ingestão de sangue. E 48 horas após, vimos que há uma redução de atividade de tripsinas no tubo digestivo de insetos infectados por Lleishmania, quando comparado com insetos não infectados”. “Estudos com Phlebotomus papatasi, principal vetor de leishmaniose na Europa, Ásia e África, mostram que, durante a digestão, o tubo digestivo do inseto se transforma em ambiente hostil para os parasitos devido à ação de enzimas digestivas”, afirma o especialista. “Como o parasito consegue a superar essas barreiras bioquímicas, deve ter estabelecido alguma relação com a atividade de tripsinas do inseto,.”


O doutorando lembra, no entanto, que esta é a primeira vez que um trabalho como esse foi realizado com o vetor e o parasito mais comuns no Brasil. “Ainda precisamos dar muitos passos, continuar os estudos sobre a expressão dessas tripsinas”, acredita.

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