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13/09/2018

Boaventura de Sousa Santos palestra sobre democracia na Fiocruz

Gustavo Mendelsohn de Carvalho (Agência Fiocruz de Notícias)


A conferência Democracia e Transformação Social (4/9) do diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e membro do Conselho Superior da Fiocruz, Boaventura de Sousa Santos, lotou os auditórios do Museu da Vida e do Centro de Documentação em História da Saúde (CDHS/COC/Fiocruz), utilizado para a transmissão direta. Participando da mesa de abertura ao lado de representantes de organizações sociais e do Judiciário, a presidente Nísia Trindade Lima pediu um minuto de silêncio “como expressão do nosso luto” pelo incêndio que atingiu o Museu Nacional. Durante a conferência, Boaventura comentaria que “um país que chora por seu museu é um grande país”.

Também compuseram a mesa de abertura: Paulo Garrido, presidente da Asfoc; a desembargadora Cristina Tereza Gaulia, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro; a juíza Simone Nacif, da Associação Juízes para Democracia; Janderson Dias, militante do Levante Popular da Juventude; Claudia Rose, do Museu da Maré; e André Lima, do Conselho Comunitário de Manguinhos (foto: Peter Ilicciev)

 

O professor iniciou sua palestra reconhecendo o momento difícil da sociedade brasileira, com tragédias diárias de diferentes tipos, “que convergem no sentido de fustigar a autoestima dos brasileiros e brasileiras, trazendo medo e cortando suas forças de resistência”. Para ele, o incêndio do museu é talvez a mais visível de muitas outras que estão ocorrendo no país, “tragédias humanas, são 14 milhões de desempregados, 15 milhões que voltaram à miséria, aumento da mortalidade infantil e materna, são ataques diários que as tragédias que exigem resistência diária”.

Segundo Boaventura, o que acontece no Brasil não é uma questão específica, “é apenas um laboratório de uma situação internacional, nós estamos num ciclo global reacionário, de forças agressivas que querem liquidar a democracia. Ele aponta como cúmplices deste movimento as classes dominantes nacionais e internacionais, “nomeadamente, o imperialismo norte-americano, extremamente ativo neste momento no continente, mas isso não nos deve impedir de pensar na resistência e no futuro”.

Ele falou sobre a sua perplexidade diante do tema proposto em palestra recente: A democracia é compatível com o capitalismo? Segundo Boaventura, quem conhece um pouco a teoria democrática sabe que “há uma tensão entre democracia e capitalismo, mas foi exatamente nas sociedades capitalistas que a tensão entre o princípio fundamental da soberania popular e, do outro lado, o princípio da acumulação infinita e do lucro limitado do capital foi controlada minimamente”.

Boaventura diz que isso aconteceu sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial, na Europa, “um continente que, não me canso de dizer, é o mais violento do mundo, que matou 78 milhões dos seus cidadãos em duas guerras durante o século 20”. Segundo ele, a democracia passou a controlar o capitalismo, de forma muito firme, por exemplo, com a tributação progressiva do capital. “Os mais jovens se surpreenderão ao saber que os homens mais ricos da Europa e dos Estados Unidos, nos anos 50 e 60, pagavam até 70% o seu rendimento em impostos, e continuavam ricos”, disse.

A tributação permitiu ao Estado promover interações não mercantis entre os cidadãos, “se não houver uma saúde pública, por exemplo, quem tem dinheiro se cura e quem não tem morre”, afirmou o professor. Entendeu-se também que havia setores estratégicos do país, que não deviam ser nacionalizadas, nem objetos de mercantilização, como a água, a eletricidade, os portos. “Foram considerados bens comuns de toda a comunidade, finalmente entendeu-se que, depois de tantos conflitos, os patrões deveriam permitir que os trabalhadores também participassem na gestão de suas empresas”, afirmou.

Conferência 'Democracia e Transformação Social' lotou os auditórios na Fiocruz (foto: Peter Ilicciev)

 

Para Boaventura, agora passamos a um período em que o capitalismo controla a democracia, “uma inversão das soluções pactuadas no pós-guerra, sutil e grosseira simultaneamente, dizendo em que condições pode existir a democracia, quem pode e até onde podemos lutar”. Ele pergunta como se deu essa inversão, e provoca dizendo que em qualquer processo eleitoral atual, “seja no Brasil, no México ou em Portugal, a primeira grande notícia das primeiras páginas dos grandes jornais é sobre qual foi a reação dos mercados, ora os mercados não votam, não são gente, não têm sexo”.

Ele pondera que é como se os mercados fossem uma entidade invisível, “mas não, são 25 empresas de capital financeiro, que detêm 50 trilhões de dólares dos 90 trilhões de dólares, que é o PIB universal global, dos quais 30% estão nos paraísos fiscais, dessas 25 empresas cinco detêm 45% desse capital”. Portanto, segundo Boaventura, cinco instituições decidem se o resultado de uma eleição é bom ou não. “Depois esses mercados têm grupos de frente, que fazem estudos pretensamente sérios, pagos a peso de ouro para condicionar o processo eleitoral”, diz.

Boaventura afirma que o contexto em que vivemos é o de “uma perversão da democracia, que não nos demos conta porque foi feita em plena normalidade constitucional”. Para ele, o princípio democrático de que “os processos (eleitorais) são certos para que os resultados sejam incertos” transformou-se no seu inverso.  Hoje o que se verifica é que para que um determinado candidato ganhe, manipula-se as eleições e os tribunais eleitorais, investe-se volumosos recursos financeiros, ou seja, “para que o resultado seja certo, os processos são incertos", conclui.

Para ele, isso acontece porque se viola um outro princípio da democracia, “que  é o pluralismo, a democracia são dois mercados, o político, dos valores e convicções que não se compram e não se vendem, e há o mercado econômico dos  valores e mercadorias que tem preço, esses dois mercados não podem se tocar para que a democracia funcione”. Boaventura analisa que esses dois campos têm se fundido sob a égide do mercado econômico, “portanto, na economia como na política, tudo se compra e tudo se vende, é a corrupção endêmica do sistema, é a destruição da própria democracia”.

O professor atribui isso à lógica do sistema neoliberal, “que começou por dizer que todo problema político é técnico, que não há alternativa e dizer isso é o mesmo que dizer que não há política, porque a política é sobre alternativas, assim, não há discussão, existe a técnica boa ou a ruim”. Boaventura argumenta que esta múltipla perversão de princípios democráticos faz com que as sociedades atuais sejam “politicamente democráticas e socialmente fascistas, muita gente tem direitos humanos e democráticos, mas não tem direito de exercê-los”.

Como exemplo disso, Boaventura cita a situação de milhões de refugiados na Europa, “enterrados em verdadeiros campos de concentração, é uma crise europeia, que está a mudar completamente a política para a extrema direita”. Ele considera que estamos vivendo um momento de degradação da democracia, que pode ser “uma pequena alteração no sistema, mas que pode destruí-lo, e as instituições que podem travar essa degradação, como o judiciário, que poderia ser um instrumento precioso neste momento está a aprofundá-la”. Fazendo um paralelo com a conjuntura brasileira, ele afirma que “quando um magistrado pode declarar, por sua conta, uma situação de risco, isso caracteriza um estado de exceção fragmentado e muito perigoso”.

Mas ele defende que há condições de resistir, “a primeira é evitar os falsos consensos, uma das estratégias do neoliberalismo para nos eliminar e destruir a política, foi despolitizar a os problemas com os quais a gente se apaixona”. Ao estabelecer uma agenda de direitos humanos universais, ninguém pode ser contra, mas não se explicita como eles se aplicam de fato. “Nós que que os defendemos esses direitos, nos vemos na contingência de apoiar a destruição do Iraque em nome dos direitos humanos, a destruição da Líbia em nome da democracia”, argumenta.

Dizendo-se “um otimista trágico”, Boaventura falou sobre o que pode ser feito para resistir, reconhecendo a dificuldade de discutir essas questões quando estamos num processo eleitoral, que “nunca é um processo de renovação das forças políticas, é um processo de sobrevivência, de cálculos eleitorais, por vezes baixos e pouco coerentes para tentar resolver questões de curto prazo, mas devemos pensar à frente, porque o país não termina em 2018”.

Pensando no futuro, ele considera que “não vamos encontrar soluções, se não deixarmos muitas ideias que temos e abrirmos a cabeça para outras”. Seria necessário “despoluir nossas mentes e nosso conhecimento”. Segundo ele, “não precisamos de alternativas, alternativas democráticas estão por todo mundo, precisamos é de pensamentos alternativos de alternativas”.

“Não vamos encontrar soluções, se não deixarmos muitas ideias que temos e abrirmos a cabeça para outras", afirmou (foto: Peter Ilicciev)

 

Citando a famosa Tese XI de Karl Marx (Teses sobre Feuerbach, 1845) - Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo, Boaventura afirma que “a gente tem que voltar a compreender o mundo de outra forma se o quer transformar, os filósofos hoje somos todos nós, o conhecimento se dispersa pela nossa sociedade”.

A questão, segundo Boaventura, é que a dominação está unida, e a resistência está fragmentada, e para superar isso “além do conhecimento científico, é preciso valorizar o conhecimento nascido nas lutas, podemos começar a pensar nas, só não temos alternativas à democracia”. Mas ele aponta a necessidade de outro tipo democracia, “a democracia representativa é pouco, é preciso uma articulação com a democracia participativa, com já tivemos aqui no Brasil, mas sem deixar que seja partidarizada, a democracia é a transformação de relações de poder desiguais em relações de igualdade da autoridade compartilhada”.

Ele defende ainda a luta pela diversidade da economia, “não tenho nada contra a economia capitalista, a não ser que se queira arrogar como sendo a única, há a economia camponesa, a indígena, a popular, a economia cooperativa, existem outras formas de propriedade”. Ele diz que tem procurado mostrar que “não podemos continuar com a tradição do sectarismo dogmático das esquerdas, sempre mais disponíveis para se unir com partidos de direita do que com outros partidos de esquerda.

Boaventura diz que o neoliberalismo é uma “máquina de produzir intimidação e resignação” e que a sociedade se divide entre uma grande maioria que só tem medo e uns poucos que só têm só tem esperanças. Para ele é preciso haver um equilíbrio entre estes dois sentimentos, “pois só ter esperança é perigoso, por isso há apenas uma tarefa para intelectuais ativistas e militantes de movimentos: dar alguma esperança àqueles que só tem medo e incutir algum medo em que só tem esperança”.

Veja o vídeo da palestra completo no Youtube

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