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13/09/2018

Radis de setembro aborda resistência contra desigualdade

Bruno Dominguez (Revista Radis)


"A injustiça social mata em grande escala”. A frase é do inglês Michael Marmot, pesquisador do Departamento de Epidemiologia e Saúde Pública da University College London, que liderou a Comissão para os Determinantes Sociais da Saúde da Organização Mundial da Saúde (OMS), durante palestra no Abrascão. A conclusão, ele mesmo indicou, já estava presente no relatório final da comissão, publicado em 2008 - Closing the gap in a generation: Health equity through action on the social determinants of health ou Redução das desigualdades no período de uma geração: Igualdade na saúde por meio da ação sobre os seus determinantes sociais.

O texto afirmava que “justiça social é uma questão de vida e morte”, pois afeta o modo como as pessoas vivem, sua chance de adoecer e seus riscos de morte prematura. E tudo é moldado por forças políticas, sociais e econômicas. “Na Dinamarca, 8% das crianças vivem na pobreza; no México, 30%. Isso é consequência de uma decisão nacional. O Brasil pode escolher se quer ser como o México ou como a Dinamarca”, disse.

A fala do pesquisador buscava reforçar a ideia de que a desigualdade não é um fenômeno natural. “Não há razão biológica para homens do Haiti terem uma expectativa de vida 18 anos menor que os homens do Canadá. Essa diferença ocorre por conta da maneira como essas sociedades estão organizadas e dos determinantes sociais da saúde”, frisou, se referindo a fatores que influenciam a ocorrência de doenças, como renda e sua distribuição, educação, habitação, segurança alimentar, emprego e condições de trabalho, redes sociais, inclusão e exclusão social, e serviços de saúde.

“Não temos que aceitar as desigualdades”, repetiu Marmot. Para o pesquisador, o Brasil é um exemplo de que é possível reduzir as diferenças. Ele citou especificamente o Bolsa-Família e seu impacto na redução da mortalidade infantil por diarreia e desnutrição. O país atingiu a meta de reduzir em dois terços os indicadores de mortalidade de crianças com até cinco anos. O índice, que era de 53,7 mortes por mil nascidos vivos em 1990, passou para 13,82 em 2015. “A resposta do país de vocês é de que é possível ter uma sociedade mais justa e com mais equidade”.

Austeridade piora desigualdade

Por outro lado, dias depois do fim do Abrascão, um grupo de especialistas em direitos humanos das Nações Unidas enviou comunicado ao governo brasileiro, em 3 de agosto, pedindo que reconsidere seu programa de austeridade fiscal e coloque os direitos humanos da população no centro de suas políticas econômicas. O diagnóstico é simples: “Algumas das decisões financeiras e fiscais feitas nos últimos anos afetam a garantia de diversos direitos, incluindo a moradia, alimentação, água, saneamento, educação, seguridade social e saúde, e estão piorando as desigualdades pré-existentes”.

O texto cita dados publicados recentemente que mostraram aumento da mortalidade infantil no Brasil pela primeira vez em 26 anos. Desde 1990, o país apresentava queda média anual de 4,9% na mortalidade. Nos anos 1980, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), chegou a registrar 82,8 mortes por mil nascimentos. Em 1994, passou a 37,2; em 2004, a 21,5. Em 2015, a taxa foi de 13,3 mortes a cada mil nascidos e, em 2016, de 14 por mil, um aumento de 4,8%.

Os relatores da ONU também apontaram “reversão dramática” das principais políticas de segurança alimentar — outro relatório, este produzido pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO/ONU), indicou a iminência de o Brasil voltar ao mapa da fome, um resultado preocupante diante dos compromissos assumidos como parte dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, a serem cumpridos até 2030. Na área de habitação, lembraram dos cortes no programa Minha Casa Minha Vida; em relação à água e saneamento, da redução do orçamento em um terço nas previsões de 2018.

Assinaram o comunicado o argentino Juan Pablo Bohoslavsky, especialista independente para a dívida externa e os direitos humanos; o brasileiro Leo Heller, relator especial para o direito humano a água e saneamento; a croata Ivana Radacic, presidente do grupo de trabalho para a questão da discriminação contra mulheres na lei e na prática; a turca Hilal Elver, relatora especial para o direito à alimentação; a canadense Leilani Farha, relatora especial para o direito à moradia; o lituano Dainius Puras, relator especial para o direito à saúde física e mental; e o burquinense Koumbou Boly Barry, relator especial para o direito à educação.

Para o grupo, as medidas de austeridade nunca devem ser vistas como a única ou primeira solução para os problemas econômicos, especialmente considerando seu impacto nos mais vulneráveis. “Alcançar metas macroeconômicas e de crescimento não pode ser feito em detrimento dos direitos humanos: a economia é servidora da sociedade, não seu mestre”, concluíram. O grupo criticou nominalmente a Emenda Constitucional 95, conhecida como PEC do teto, que limita os gastos públicos por 20 anos, afirmando que “não deixa nenhuma esperança de melhoria no futuro próximo”.

“Existe um equívoco frequente entre governos e instituições financeiras internacionais de que as crises econômicas podem justificar todo e qualquer corte nos serviços essenciais e nos direitos econômicos e sociais. Mas exatamente o oposto é verdadeiro. As medidas de austeridade devem ser tomadas apenas com a análise cuidadosa de seu impacto, em particular porque elas afetam os indivíduos e grupos mais desprivilegiados. Elas devem ser consideradas apenas após uma avaliação abrangente do impacto sobre os direitos humanos.”

No comunicado, os especialistas identificaram que as pessoas vivendo na pobreza e outros grupos marginalizados estão sofrendo desproporcionalmente como resultado de medidas econômicas restritivas em um país que já foi considerado exemplo de políticas progressistas para reduzir a pobreza e promover a inclusão social. “As mulheres e crianças que vivem na pobreza estão entre as mais atingidas, assim como a população afrodescendente, as populações rurais e as pessoas que vivem em assentamentos informais”, ressaltaram.

Piora nos indicadores de saúde

No Abrascão, a epidemiologista Deborah Carvalho Malta, professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que por 12 anos trabalhou como diretora do Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos Não Transmissíveis e Promoção da Saúde do Ministério da Saúde, expôs dados que corroboram a preocupação dos especialistas da ONU. “A crise institucional e o retrocesso nas políticas públicas já impactaram nossos indicadores de saúde”, afirmou. Um exemplo: a taxa de mortalidade por doenças crônicas não transmissíveis, que vinha caindo, estagnou pela primeira vez. O compromisso com a Agenda 2030 e os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável é de reduzir em um terço a mortalidade prematura por doenças não transmissíveis em 2030. “Com os resultados dos últimos cinco anos projetados até o prazo final, o país só atingiria 18% de declínio”, calculou.

O tabagismo, que vinha em declínio frequente nos últimos 20 anos, apresentou estabilidade. A prática de atividade física, que crescia havia sete anos, caiu. O consumo de frutas, legumes e hortaliças teve piora abaixo dos níveis de 2013. O uso abusivo de álcool cresceu. Entre as razões, Deborah indicou que o Brasil parou de avançar nas medidas regulatórias, como taxação de produtos. “O Estado precisa se preocupar com a proteção dos indivíduos. O México taxou as bebidas açucaradas, o que diminuiu a prevalência do consumo de refrigerantes”. Ela citou “forte oposição da indústria” a projetos como de embalagens genéricas, taxação de alimentos ultraprocessados, subsídios a alimentos saudáveis e restrição a propaganda de cerveja.

Desigualdade no acesso à saúde

Pesquisadora do Laboratório de Informação em Saúde (LIS/Icict) da Fiocruz e coordenadora da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), Célia Landmann Szwarcwald acrescentou, no Abrascão, que a falta de equidade social se manifesta não só nas taxas de morbimortalidade ou de adoecimento mais precoce das camadas menos favorecidas, mas também no acesso e utilização dos serviços de saúde por elas. A partir de dados da PNS de 2013, que realizou 64.348 entrevistas domiciliares e 60.202 entrevistas individuais, foi possível notar desigualdade na consulta a médicos por renda e região geográfica. Entre os brasileiros que recebem até meio salário mínimo, 66% se consultaram com médico em um período de 12 meses, diante de 89% dos que recebem 10 salários mínimos ou mais. No Norte, o acesso foi de 61%; no Sudeste, de 75%.

Os reflexos são claros na auto-avaliação de saúde: 57% dos que recebem até meio salário avaliam sua saúde como muito boa ou boa, índice que é de 88% entre os que ganham 10 salários ou mais. “O Brasil, por meio de uma combinação de políticas públicas e de assistência de saúde, melhorou significativamente o acesso ao médico para uma ampla camada da população, mas permanecem desafios a serem superados”, afirmou. Segundo a pesquisadora, a PNS retrata uma desigualdade que tende a ser acentuada, dada a situação do país.

Landmann destacou que o principal argumento para a redução das desigualdades da saúde baseia-se no princípio da equidade, que incorpora a dimensão de justiça social. O conceito foi proposto pela pesquisadora inglesa Margaret Whitehead em 1990: “Equidade em saúde implica que idealmente todos devem ter uma justa oportunidade de atingir todo o seu potencial de saúde e que ninguém deve estar em desvantagem para atingir esse potencial, se isso puder ser evitado”.

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Confira na íntegra a edição 192 da Radis.

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