11/06/2018
Bruno Dominguez (Revista Radis)
“Você está inapto a doar sangue”. Foi essa a frase que o então estudante de Direito Marcondes Júnior ouviu ao procurar o Hemocentro de Brasília para realizar esse ato de solidariedade. O motivo: Júnior é homossexual. Na entrevista da triagem, como de praxe, foi posta a ele uma série de perguntas. Uma delas questionava se ele havia tido relação sexual com outro homem nos últimos 12 meses. A resposta foi sim. “Então o profissional me informou, de maneira genérica, que eu não poderia doar, afirmando que apenas seguia regras e que eu precisaria ficar um ano sem transar se quisesse voltar ao hemocentro”, conta sobre aquele dia de 2011, quando tinha 18 anos. Júnior estava acompanhado do namorado e de um casal de amigos, que, ao contrário dos dois, tiveram sangue coletado simplesmente por serem heterossexuais. “Saí muito assustado, sem entender, revoltado, porque não fazia sentido”, lembra bem.
A experiência foi tão marcante que Júnior transformou a restrição à doação de sangue por homossexuais masculinos no Brasil em seu projeto de conclusão de curso no Centro Universitário de Brasília, defendido ano passado. Movido pelo sentimento de injustiça para com ele e com outros homens gays, saiu conversando sobre o assunto com quem encontrava pelo caminho - a mãe, amigos, professores dos cursos de Direito e de Ativismo LGBT - até que sua indignação chegou aos advogados Rafael Carneiro e Matheus Cardoso. A partir do relato de Júnior e do que ele já havia pesquisado, ambos ajuizaram em nome do Partido Socialista Brasileiro (PSB) a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5543, que questiona no Supremo Tribunal Federal (STF) as regras para doação de sangue, por considerá-las discriminatórias.
Duas normas administrativas proíbem que o sangue de homens homossexuais seja sequer coletado no país. O artigo 64 da Portaria 158/2016 do Ministério da Saúde considera “inapto temporário por 12 meses homens que tiveram relações sexuais com outros homens e/ou as parceiras sexuais destes”. O artigo 25 da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 34/2014 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) estabelece que “os contatos sexuais que envolvam riscos de contrair infecções transmissíveis pelo sangue devem ser avaliados e os candidatos nestas condições devem ser considerados inaptos temporariamente por um período de 12 meses, incluindo-se indivíduos do sexo masculino que tiveram relações sexuais com outros indivíduos do mesmo sexo e/ou as parceiras sexuais destes”. A justificativa: esse grupo está mais sujeito a infecções sexualmente transmissíveis, como o HIV.
Em 25 de outubro de 2017, quando houve a primeira sessão do julgamento da ADI, Júnior - agora com 24 anos - estava no plenário do STF para ouvir os votos dos ministros Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux e Rosa Weber, que apontaram como inconstitucionais os dispositivos que restringem a doação, e do ministro Alexandre de Moraes, que votou como parcialmente procedente a ação. No dia seguinte, Gilmar Mendes antecipou pedido de vista dos autos. Não há previsão de retorno da Adin à pauta, para ser analisada por mais seis ministros. “Foi muito louco estar lá. A gente pensa que não tem poder para mudar as coisas ou promover diálogos e, no entanto, a questão estava sendo debatida no STF”, comenta com a Radis.
Estigma e preconceito
“Os dispositivos do Ministério da Saúde e da Anvisa ferem o direito à igualdade e o direito à dignidade da pessoa humana ao estabelecerem critério discriminatório - única e exclusivamente a orientação sexual do candidato - para impedir um ato civil de solidariedade”, avalia o advogado Rafael Carneiro, um dos autores da ação. Ele observa que as normas infringem a Constituição ao não levarem em conta fatores que, de fato, possam repercutir na qualidade do sangue doado, como por exemplo o uso de preservativos e a quantidade de parceiros. Assim, a doação de um homem gay casado com parceiro não-infectado com o vírus HIV é negada, quando a de uma mulher heterossexual com mais de um parceiro ocasional ou desconhecido pode ser transfundida. “A legislação pode e deve avaliar condutas individuais, mas não de grupos, pois isso significa estigmatização, preconceito”, observa Rafael. “Os critérios têm que servir para todos”.
Para o advogado, o prejuízo não é somente para homens que fazem sexo com homens (HSH), mas para toda a sociedade: “Há escassez reiterada nos bancos de sangue no Brasil, e o Estado ainda cria barreiras inconstitucionais aos que desejam doar”. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), existem 101 milhões de homens no país. Desses, cerca de 10,5 milhões são homo ou bissexuais. “Muito sangue tem sido derramado em nome de preconceitos que não se sustentam”, cunhou o relator da Adin no STF, o ministro Edson Fachin.
Sangue brasileiro
Em 2016, 5,1 milhões de brasileiros se voluntariaram para doação, segundo o Sistema Nacional de Informação da Produção Hemoterápica (Hemoprod) da Anvisa. Desse total, 20,6% foram considerados “não aptos” após a triagem clínica - ou seja, uma a cada cinco pessoas que procuraram hemocentros da rede pública teve seu sangue recusado. Dentre as principais causas, estavam anemia (29,9%), hipotensão (21,6%) e malária (20,2%). A inaptidão por comportamento de risco para infecções sexualmente transmissíveis foi de 4,1%.
Nos “aptos”, foram realizadas 3,7 milhões de coletas (136 mil não compuseram o quantitativo por desistência e outras intercorrências). Assim, a taxa de doadores de sangue chegou a 19,2 por mil habitantes. Os países de média renda têm taxa média de 11,7 doadores por mil habitantes e os de alta renda, de 36,8 doadores por mil habitantes. O índice do Brasil equivale a 1,9% da população. Para a Organização Mundial da Saúde (OMS), o percentual mínimo deve ser de 1%, preferencialmente se aproximando dos 3%.
“O processo de triagem clínica é um método de avaliação multicritério que envolve elementos individuais. Por exemplo, o estado da saúde atual e passado do candidato a doação, as viagens que realizou, os comportamentos sexuais individuais (uso de camisinha, número de parceiros etc.), os medicamentos em uso e os que foram usados no passado, os procedimentos médicos submetidos, dentre outros. Caso o doador apresente alguma situação acrescida de risco neste momento, já deve ser considerado inapto”, explica João Batista da Silva Junior, da Gerência de Sangue, Tecidos, Células e Órgãos (GSTCO) da Anvisa.
É aí que, para os ministros do STF que votaram até agora, entra o caráter discriminatório. Além do comportamento individual, acoplam-se na triagem critérios epidemiológicos. “A inaptidão temporária desse grupo se dá devido aos índices que apontam a população HSH como de maior vulnerabilidade às doenças sexualmente transmissíveis”, argumenta João, frisando que a Anvisa segue recomendações da OMS e da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) para impedir a doação. Questionada por grupos LGBT+ (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e outros comportamentos sexuais), a OMS sinalizou que pode proceder uma revisão da norma.
Em virtude da discussão da ADI 5543, afirma ele, a Anvisa solicitou no ano passado ao Instituto de Medicina Tropical de São Paulo (IMT/USP) análise sobre o risco da retirada da restrição aos HSH - a partir de dados coletados em quatro grandes hemocentros (Fundação Pro Sangue, Hemorio, Hemominas e Hemope). “Os resultados, ainda não publicados em revista internacional, demonstraram que a chance de ser HIV positivo é 70 vezes maior para os HSH com mais de um parceiro sexual no último ano, em comparação com heterossexuais com mais de uma parceira. Quando se compara HSH com apenas um parceiro sexual no último ano há uma chance 7,3 vezes maior de ser HIV positivo do que os heterossexuais com uma parceira”.
Na avaliação da diretora do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI/Fiocruz), Valdiléa Veloso, “a inaptidão desses homens por um ano não tem nada de científica e é discriminatória”. “O fato de o HIV ser mais frequente entre homens que fazem sexo com homens não justifica que todos sejam carimbados como tendo sangue inseguro”, aponta. Para ela, critérios de comportamento individuais - e não de grupos - são capazes de garantir a segurança da coleta e da transfusão.
Avanços na testagem
Valdiléa ressalva que a restrição fez sentido no passado, quando os testes para identificar infecções eram menos sensíveis. A grande preocupação sempre girou em torno da janela imunológica, período imediatamente posterior à infecção no qual os exames laboratoriais ainda não detectam o vírus. Nos primeiros imunoensaios para diagnosticar o HIV no sangue (denominados de imunoensaios de primeira geração), desenvolvidos em 1985, a janela imunológica correspondia a um período de 6 a 8 semanas. Assim, em virtude do temor e desconhecimento científico acerca do vírus da aids, passou-se a proibir as doações sanguíneas advindas de certos grupos, dentre eles homens homossexuais. A primeira vez que o Ministério da Saúde enunciou a proibição desses homens doarem sangue no país foi em 1993, com a Portaria 1366.
Hoje, todo sangue coletado é testado com imunoensaios de quarta geração, reduzindo a janela imunológica para 15 dias. O chamado teste de ácido nucleico (NAT) possibilita a detecção do material genético do vírus, em vez de buscar os anticorpos que o organismo produz contra eles, como faziam os testes tradicionais. Assim, como destacou o ministro Luís Roberto Barroso, “se o problema é a janela imunológica, a regra que impõe abstinência por 12 meses de desfruto da vida sexual normal é desnecessária”. Rafael Carneiro acrescenta que, “na prática, a inabilitação temporária ao candidato homossexual que tenha tido relação sexual nos últimos 12 meses acaba por ser permanente para os que possuam mínima atividade sexual”.
Vento de mudança
Argentina, Chile, Espanha e Colômbia são alguns dos países que já reviram a restrição a homossexuais. Em 2015, o Ministério da Saúde argentino substituiu o antigo critério baseado no conceito de grupos de risco por uma abordagem médica que prioriza o estado de saúde e as condições clínicas dos candidatos à doação. Em 2013, o Chile passou a selecionar os doadores apenas em “critérios estritamente técnicos e de segurança, sem condições de discriminação arbitrária como orientação sexual, política, religião ou de qualquer outra índole neste sentido”. Em 2005, a Espanha instituiu normas que também não se baseavam na orientação sexual, excluindo somente pessoas cuja conduta possui risco elevado de contrair enfermidades infecciosas graves passíveis de transmissão por meio de material sanguíneo (relações sexuais sem preservativo e com variados parceiros, por exemplo).
Em 2012, na Colômbia, a questão foi à Corte Constitucional, tal qual no Brasil. A conclusão foi a de que a presunção de que relações sexuais entre homens são perigosas, e que por si só esses indivíduos têm maior probabilidade de estarem infectados pelo vírus HIV, tem como consequência o fortalecimento do estigma discriminatório e o sacrifício de um número elevado de possíveis doadores que buscam o sistema de saúde com um fim altruísta. Ficou determinado que o Ministério da Saúde deveria revisar as normas sobre doação.
Mesmo sangue
Os ministros do STF que proferiram seu voto até aqui tiveram entendimento semelhante; em especial, o relator da ação, Edson Fachin, para quem o sangue representa mais que uma dimensão física, mas também a prova pulsante do pertencimento a uma mesma espécie. Em seu parecer, Fachin demonstra que doar sangue é um empático e eminentemente altruísta gesto que ressignifica esse pertencimento. “Assim, a exclusão a priori de quaisquer grupos de pessoas da possibilidade de praticar tal ato deve ser vista com atenção redobrada, devendo sempre ser dotada de ampla, racional e aprofundada justificativa (ou seja, razões públicas).”
Para ele, o estabelecimento de grupos - e não de condutas - de risco incorre em discriminação, pois lança mão de uma interpretação consequencialista desmedida que concebe especialmente que homens homossexuais ou bissexuais são, apenas em razão da orientação sexual que vivenciam, possíveis vetores de transmissão de variadas enfermidades, como a aids. O resultado de tal raciocínio seria: se tais pessoas vierem a ser doadores de sangue devem sofrer uma restrição quase proibitiva do exercício de sua sexualidade para garantir a segurança dos bancos de sangue e de eventuais receptores.
“Não pode o Direito incorrer em uma interpretação utilitarista, recaindo em um cálculo de custo e benefício que desdiferencia o Direito para as esferas da Política e da Economia. Não cabe, pois, valer-se da violação de direitos fundamentais de grupos minoritários para maximizar outros interesses, mesmo que de uma maioria, valendo-se, para tanto, de preconceito e discriminação”, afirma Fachin, para quem não basta encerrar a norma em questão. “Há de desconstruí-la para permeá-la com justiça, robustecendo o que se entende por dignidade e igualdade.”
A dignidade da pessoa humana é, como indica o ministro, o reconhecimento do valor moral do sujeito, idêntico ao valor moral das demais pessoas. “O princípio da dignidade da pessoa humana busca, assim, proteger de forma integral o sujeito na qualidade de pessoa vivente em sua existência concreta”, ensina. Fachin julga que a portaria do Ministério da Saúde e a resolução da Anvisa afrontam a autonomia daqueles que querem doar sangue. “Tal restrição, consistente praticamente em quase vedação, viola a forma de ser e de existir desse grupo de pessoas; viola subjetivamente a todas e cada uma dessas pessoas; viola também o fundamento próprio de nossa comunidade no respeito à diversidade.”
“Não se pode tratar os homens que fazem sexo com outros homens e/ou suas parceiras como sujeitos perigosos, inferiores, restringido deles a possibilidade de serem como são, de serem solidários, de participarem de sua comunidade política. Não se pode deixar de reconhecê-los como membros e partícipes de sua própria comunidade. Isso é tratar tais pessoas como pouco confiáveis para ação das mais nobres: doar sangue. É preciso, pois, reconhecer aquelas pessoas, conferir-lhes igual tratamento moral, jurídico, normativo, social.”
Leia mais na edição de junho da revista Radis.