10/08/2018
Nos dias 3 e 6 de agosto, enquanto estiver acontecendo a audiência pública no Supremo Tribunal Federal (STF) que vai ouvir diferentes setores da sociedade contra e a favor da descriminalização do aborto no país, algumas mulheres estarão comprando medicamentos que interrompem a gravidez de maneira irregular pela internet. Elas assistirão a vídeos tutoriais e tentarão receber orientações de pessoas desconhecidas, em aplicativos como o Whatsapp, na busca de tornar o procedimento menos inseguro. Algumas mais estarão entrando em clínicas clandestinas. Outras, ainda, sem nenhum recurso ou informação, estarão empreendendo ações desesperadas e extremamente danosas para a sua saúde, injetando substâncias como soda cáustica ou inserindo objetos como agulhas de crochê no útero.
Estima-se que entre 416 mil e 865 mil mulheres de todas as idades, credos e grupos sociais se expõem anualmente ao aborto inseguro no Brasil. Segundo a última Pesquisa Nacional do Aborto (PNA), realizada em 2016, 13% das entrevistadas já haviam provocado um aborto na vida. Mas, conforme aumenta a idade, aumenta essa proporção. Em mulheres de 35 a 39 anos, uma em cada cinco referia já ter abortado. E esse índice se mantém estável ao longo dos últimos 10 anos.
“Manter o aborto como crime não diminui o número de procedimentos, não impede que eles aconteçam, só empurra as mulheres para uma situação de insegurança e clandestinidade”, resume a epidemiologista Rosa Domingues, uma das autoras da revisão sistemática sobre o aborto no país que aborda os trabalhos da última década sobre o tema. A pesquisa, realizada em coautoria com Sandra Fonseca, pesquisadora da Universidade Federal Fluminense (UFF), ainda está para ser publicada em edição temática especial do periódico científico Cadernos de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), mas alguns dados foram antecipados com exclusividade para esta reportagem da Radis. Dos 36 artigos científicos sobre aborto ilegal identificados pela revisão sistemática, quatro eram referentes a pesquisas de base populacional de abrangência nacional: duas edições da Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Mulher e da Criança (1996 e 2006), realizadas pelo Ministério da Saúde, e duas edições da Pesquisa Nacional do Aborto, realizadas em 2010 e 2016.
Do emaranhado de estatísticas, entremeadas com uma névoa de subnotificação e tabu, é possível extrair grandes lições, de acordo com Rosa. A primeira é que a prevalência do aborto inseguro não caiu no Brasil. Os resultados da Pesquisa Nacional do Aborto (PNA) de 2016, por exemplo, indicam que esse é um fenômeno frequente e persistente entre as mulheres de toda as classes sociais, grupos raciais, níveis educacionais e religiões. No entanto, acontece com maior frequência entre mulheres de menor escolaridade, pretas, pardas e indígenas, vivendo nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste.
Como a PNA já apontava em 2010, metade das mulheres que aborta utiliza medicamentos para essa finalidade, e quase a metade precisou ficar internada para finalizar o procedimento. Um ponto que a epidemiologista destaca é que as complicações e hospitalizações decorrentes de aborto inseguro têm se reduzido, em especial pelo uso do medicamento misoprostol (de nome comercial Cytotec), cuja venda é proibida no país. Essas complicações são distribuídas de maneira desigual nas regiões e nos diferentes estratos sociais.
Seguro x inseguro
A Organização Mundial da Saúde (OMS) classifica os abortos não como ilegais ou legais, mas como inseguros, parcialmente seguros ou seguros. No artigo Estimating abortion safety: advancements and challenges, produzido em parceria com o Instituto Guttmacher e publicado em outubro de 2017 no periódico científico The Lancet, a organização define como aborto não seguro uma gravidez que é encerrada por pessoas que não possuem as habilidades e informações necessárias ou em um ambiente que não está em conformidade com os padrões médicos mínimos. Quando é realizado em sintonia com as diretrizes e normas da OMS, o risco de complicações graves ou morte é insignificante.
Entre 2010 e 2014, aproximadamente 55% de todos os abortos no mundo foram realizados de forma segura, ou seja, por trabalhadores de saúde qualificados, usando um método recomendado pela OMS apropriado para a duração da gravidez, segundo a pesquisa. Por outro lado, 45% foram não seguros, somando 25 milhões por ano nesse período - 97% deles em países em desenvolvimento na África, Ásia e América Latina.
Pela primeira vez, o documento inclui subclassificações, como “menos seguro” ou “nada seguro”. A distinção permite uma compreensão mais matizada das diferentes circunstâncias de abortos entre as mulheres que não conseguem ter acesso a um profissional qualificado. Quase um terço (31%) foram considerados “menos seguros”, ou seja, executados por profissionais qualificados com um método não seguro ou defasado, como a “curetagem uterina”, ou por uma pessoa não qualificada, embora usando um método seguro. E 14% foram “nada seguros”, realizados por pessoas que usavam métodos perigosos, como a introdução de objetos estranhos e o uso de misturas de ervas. Complicações derivadas de abortos “nada seguros” podem incluir aborto incompleto (que acontece quando não se retira do útero todo o tecido da gravidez), hemorragia, lesões vaginal, cervical e uterina, além de infecções.
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