07/05/2020
Assim como na década de 1980, quando a epidemia de HIV/Aids fez florescer inúmeras questões históricas e impulsionou essa temática a se tornar objeto de pesquisa, atualmente o novo coronavírus tem suscitado perguntas aos historiadores sobre como, em outros momentos da nossa história, nós, brasileiros, nos comportamos em épocas de epidemias. A pandemia mais impactante do último século ficou conhecida como gripe espanhola, dizimando cerca de 50 milhões de pessoas em todo mundo. No Brasil, estima-se que tenha havido 300 mil mortes, sendo, aproximadamente, 4 mil no Rio Grande do Sul. Entretanto, esses foram os números oficiais divulgados; os casos de subnotificação eram milhares.
No auge da pandemia, o jornal de maior circulação no Rio Grande do Sul noticiou: “Na sua ‘tournée’ maléfica pelo mundo, a influenza hespanhola acaba de chegar, a poucos dias faz, ao Rio de Janeiro e veio até o nosso Estado, no porto do Rio Grande. Até hoje, está a medicina embaraçada para explicar o aparecimento dessa enfermidade que surgiu assim, duma hora para outra, com um tão grande poder de contágio e tão variável nos seus efeitos”. Em poucos dias as notícias da gripe ocuparam as páginas dos jornais gaúchos, com informações sobre fechamento de comércios, números de doentes, mortes, busca por donativos, entre outras.
Na mesma intensidade começaram a aparecer anúncios garantindo remédios milagrosos. Promessas de “único remédio profilático e curativo”, “acabou-se a influenza”, “o mais poderoso desinfetante conhecido”, circulavam diariamente nos jornais. Eram constantes as informações desencontradas sobre qual a melhor forma de prevenção e tratamento para a epidemia.
A falta de transparência nas informações sobre os números de casos também era muito comum. Em Santa Maria, no interior do Rio Grande do Sul, dados do Hospital de Caridade, que, na época, transformou-se em hospital de isolamento na cidade, demonstram o desencontro oficial dos números: entre 24 de outubro, data do primeiro caso diagnosticado, e 31 de dezembro de 1918, foram internadas 248 pessoas com a gripe espanhola. Destes, houve 42 óbitos. No entanto, acompanhando os boletins epidemiológicos publicados diariamente no jornal “A Federação”, percebemos que, somente no primeiro dia notificado, já havia 255 casos, entre internados no hospital, somados a doentes que estavam em uma enfermaria militar, na prisão e os atendidos por médicos em residências particulares.
No dia 25 de novembro de 1918, já somavam quase 300 casos confirmados, sem contar outros 231 indigentes atendidos pela assistência pública que não notificou as causas. Nesse mesmo dia, a cidade informou que os médicos estavam atendendo em domicílio “um grande número de gripados”, que a igreja metodista e os espíritas estavam prestando socorro aos seus membros com medicamentos. Foram recolhidos também donativos em dinheiro e alimentos para distribuição aos pobres doentes.
Além do crescimento diário do número de enfermos, o cotidiano das cidades também era constantemente modificado. As notícias reportavam sobre o fechamento de bancos por falta de funcionários saudáveis; diminuição do número de trens circulando; intermitência no serviço de limpeza urbana porque os trabalhadores estavam gripados; redução na inspeção sanitária nas áreas rurais por ausência de fiscais; diminuição do número de médicos atendendo no hospital devido à contaminação pela influenza. Esses dados são referentes a Santa Maria, que, na época, possuía aproximadamente 50 mil habitantes, entretanto, são questões comuns a muitos outros contextos, inclusive atuais.
Longe de dizer que a história se repete, ao refletir sobre como as sociedades enfrentaram outras pandemias, podemos aprender com seus erros, e identificar de que formas nossos comportamentos são influenciados pelas notícias diárias e as maneiras como são divulgadas. Os elos entre a Espanhola e a Covid-19 são, entre outros, as subnotificações, que geram informações desencontradas e influenciam diretamente na forma como as autoridades se comportam perante a doença.
As subnotificações na atual pandemia estão muito relacionadas à testagem. Enquanto, por exemplo, a Itália testa 37.158 pessoas por milhão, o Brasil faz apenas 1.597 testes por milhão de habitantes, de acordo com o site Worldometer. Também segundo dados do portal Covid-19 Brasil, site alimentado por cientistas de várias universidades como, USP, UNB, UFRJ e UFRGS, que se reuniram de forma independente para monitorar e analisar a pandemia no país, estima-se que o número de casos no Brasil seja, ao menos, 15 vezes maior que o notificado. Essa projeção foi elaborada a partir do número de óbitos por coronavírus, indicador mais consolidado no país. A metodologia utilizada baseia-se nos cálculos da taxa de mortalidade da Coreia do Sul, um dos poucos países que conseguiu testar em massa sua população, sugerindo que a sua taxa seja utilizada como padrão, conforme recomendações da OMS.
Em 1918, os casos de espanhola eram confirmados através do diagnóstico clínico; também algumas autópsias eram realizadas para fins de pesquisas do agente etiológico da doença, uma grande controvérsia no período. Segundo Christiane Souza, na época, alguns médicos defendiam que a pandemia era causada pelo mesmo agente da influenza, apenas de uma forma mais grave. Já outros, como “os portugueses Pires de Lima e Carlos França tentavam demonstrar que se tratava da doença conhecida como febre dos três dias ou pappataci, provocada por um agente invisível e filtrável, transmitido pela picada da fêmea de uma espécie de mosquito – o Phlebotomus papatassi” (Souza, 2009: 135).
Atualmente, o diagnóstico de Covid-19 é realizado através de dois tipos de testes: PCR e sorológico. O primeiro detecta o material genético do vírus, a partir de fluídos e tecidos; e o segundo identifica a presença de anticorpos contra o vírus produzidos pelo organismo do doente. No Brasil, eles são distribuídos pelo Ministério da Saúde e a testagem é realizada pelo sistema de saúde, hospitais e laboratórios, públicos e privados.
Existem algumas especificidades no manejo desses testes e no período indicado para a aplicação de cada um deles: o PCR é indicado para o doente sintomático, pois, após a cura ou morte, o teste não detecta mais a presença do vírus, o que pode gerar uma subestimativa de casos, visto que alguns pacientes assintomáticos não são testados. Já o sorológico permite detectar se o corpo do doente foi invadido por algum microrganismo estranho, mesmo depois de curado, visto que os anticorpos permanecem na circulação sanguínea por um longo período, indicando infecção atual ou passada. Esse teste indica também contato com o vírus mesmo no caso dos assintomáticos. Suas limitações consistem em uma janela imunológica específica e na menor sensibilidade: os anticorpos não são detectados tão logo a doença se instala, ou assim que o contato com o vírus se produz, e o teste pode dar positivo para casos de vírus semelhantes com os quais se teve contato anteriormente.
Os testes sorológicos vinham sendo considerados fundamentais para a identificação de populações imunizadas e para o planejamento da flexibilização da quarentena durante a pandemia, mas ainda não há consenso entre os pesquisadores se o fato de já ter adquirido Covid-19 garante imunidade aos pacientes. Embora uma reinfecção, imediatamente após a cura, seja “altamente improvável”, pode acontecer uma “vitória apenas parcial” do sistema imunológico sobre o vírus, que, por sua vez, pode voltar a causar sintomas ou a se replicar. Esse fenômeno, conhecido como persistência, é “a capacidade de um vírus continuar “escondido” no organismo mesmo depois de a pessoa se recuperar de uma infecção”.
Outro ponto referente à subnotificação diz respeito ao fato de que, desde o início da pandemia, o número de mortes por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) tem crescido exponencialmente, e seus sintomas são muito semelhantes aos da Covid-19: febre, tosse, dor de garganta e dificuldade para respirar. Como a notificação dessa doença ao sistema do Ministério da Saúde é obrigatória, os profissionais de saúde, percebendo esse aumento súbito, passaram a testar os acometidos de SRAG, e, até o dia 11 de abril, dos 32.360 casos de SRAG, mais de 7 mil já tiveram o resultado laboratorial. Destes 7 mil, 70% testaram positivo para o novo vírus.
Algo muito semelhante ocorreu no decorrer da gripe espanhola, durante o seu pico epidêmico: os casos de morte por deficiências respiratórias e pneumonia aumentaram, representando números que mascararam o montante de mortes pela influenza. Passado e presente demonstram que ter acesso ao número mais preciso possível de casos, por meio de informações científicas, manejo clínico e testes qualificados, significa uma política de saúde mais efetiva, com investimentos direcionados às demandas reais de cada região.
*Daiane Rossi é doutora pelo Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde (PPGHCS) e pesquisadora recém-doutora na Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), vinculada ao projeto Memória Institucional: Mulheres na Fiocruz