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29/04/2020

O aumento da violência contra a mulher na pandemia de Covid-19: um problema histórico

Eliza Toledo*


A pandemia de Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus, foi anunciada pela Organização Mundial da Saúde em 15 de março de 2020 e tem afetado significativamente a vida de bilhões de pessoas. O confinamento social tornou-se a maior medida preventiva contra o contágio do vírus, fazendo com que muitas pessoas tenham suas atividades restritas ao ambiente doméstico. Algumas delas, mulheres de diversas idades e condições econômicas, encontram-se confinadas com parceiros agressivos e vemos o alarmante aumento da violência de gênero se tornar destaque em vários jornais pelo mundo.

No começo deste mês de abril, o periódico El País informava que doze mulheres haviam sido assassinadas na Colômbia durante a quarentena [1]. Já o jornal francês Le Monde, que publica dados dessa violência em diferentes países desde o começo do confinamento social, informava em fins de março que os números de mulheres e garotas agredidas “se multiplicavam” na China [2]. Há uma semana, esse mesmo jornal destacava essa violência na nossa vizinha Argentina: ao menos seis mulheres e meninas haviam sido assassinadas desde o começo do isolamento [3]. A França é também palco do aumento das violências conjugais contra as mulheres desde o começo da crise sanitária provocada pelo coronavírus, contabilizando um aumento de 30% dessas agressões.

Em diversos países, esses números sobem. Todos os contextos demonstram aquilo que Catalina Oquendo define no título de sua matéria em 6 de abril de 2020: “A violência de gênero é uma pandemia silenciosa” [1]. Importante elucidar os termos usados para nomear tais violências. No Brasil, a noção de violência de gênero tem suas origens marcadas pela noção de “violência contra a mulher” que se difundiu principalmente entre as décadas de 1970 e 1980. Isso se deu em função de mobilizações de mulheres contra assassinatos cometidos por seus cônjuges, além de outros tipos de violências ocorridas no espaço familiar, como a psicológica, espancamentos e outras formas de maus tratos.

Com o avanço dos estudos de gênero no país, nos anos 1990, passou-se a utilizar de forma mais recorrente o conceito de “violência de gênero”, que reflete relações de poder e sociabilidades produzidas por desigualdades de gênero, étnicas e de classe. Elas se referem principalmente a violências sofridas por mulheres de diferentes faixas etárias e que são, em sua maioria, alvo de violência masculina. Segundo dados do Ministério da Saúde, no Brasil, cerca de 70% dos casos são cometidos por cônjuges ou por alguém dentro da própria família da vítima.

Esse breve recuo no tempo nos permite ressaltar que o contexto de pandemia da Covid-19 tem intensificado a violência de gênero, mas não a criou. Vemos essa intensificação em função do isolamento de mulheres que se veem confinadas com parceiros agressivos, que exercem sobre elas maior controle diante da sensação de maior impunidade provocada pelo isolamento. Outros fatores agravam comportamentos de parceiros já violentos, como o uso de álcool e a situação econômica desfavorável, que abala premissas de masculinidade a partir do desemprego ou da diminuição de renda.

Esses graves problemas para a saúde e para a vida das mulheres, novamente, não são novos: em 2018, a frase proferida pelo secretário-geral da ONU, António Guterres, muito se assemelha a de Oquendo: “Violência contra as mulheres é ‘pandemia global” [4]. Mais do que isso, pois essa violência não é um fenômeno agudo, que ocorre em intervalos de tempo restritos, mas um problema crônico, de caráter histórico e estrutural, que antecede em muito o surgimento de coronavírus. Estamos assistindo a um novo episódio desse fenômeno social e problema de saúde pública.

Neste mês, o Brasil mostrou novamente seus números alarmantes. Na primeira semana de abril, o portal R7 destacava: “Sem lugar seguro: quarentena expõe crise de violência doméstica no país”. Cerca de quinze dias depois, a Folha de São Paulo publicou que as mortes de mulheres dobraram naquele estado [5]. A preocupação com o aumento das agressões fez com que o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, pedisse no começo deste mês todos os países “considerem os serviços de combate à violência doméstica como um serviço essencial, que deve continuar funcionando durante a resposta à Covid-19” [6]. Medida imprescindível, mas é preciso lembrar que a subnotificação dos casos é um problema que já acompanha as estatísticas dessas formas de violência fora do contexto da pandemia. Um dos empecilhos às notificações, destacado pela diretora executiva-adjunta da ONU Mulheres, Åsa Regnér, é o medo gerado pela denúncia. Muitas vezes, ao delatar tais agressões, as mulheres se expõem a riscos ainda maiores, como o de assassinato. 

Assassinatos que têm nome: feminicídio. Face última e cruel das múltiplas encarnações da violência contra as mulheres, que ganhou na Itália o seguinte contorno em contexto pandêmico: um enfermeiro matou a namorada, com a justificativa de que ela o havia contaminado com coronavírus [7]. Uma notícia que não denuncia o medo que se tem de um vírus, mas a banalização da vida de mulheres. Um caso que explicita uma cultura de violência que atinge massivamente países no ocidente e no oriente, certamente somada a outras formas de vulnerabilidade vivenciadas pelas vítimas. Lembremos que o Brasil ocupa o quinto lugar no ranking mundial de violência contra mulheres, com cerca de uma mulher assassinada a cada duas horas – número que, certamente, camufla uma realidade ainda mais alarmante [8].

A importância de se ver e agir sobre esses dados de forma perene é gritante e urgente. Não haverá resposta para o machismo e para a misoginia (que matam perpetuamente) se não vermos também o quanto custa à saúde física e mental de meninas e mulheres a falta de investimento em pesquisa e educação de gênero; investimento em ciência que urge nas diversas etapas de ensino e esferas sociais, para que haja a valorização de vidas humanas.

Você pode denunciar casos de violência contra a mulher pelos números 180 e 190.

*Eliza Toledo é bolsista de pós-doutorado (Programa Inova Fiocruz) no Departamento de Pesquisa em História das Ciências e da Saúde (Depes) e no Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz)

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