16/10/2020
A edição especial do Boletim Observatório Covid-19 Fiocruz traz uma análise dos mais de seis meses da pandemia que vem impactando a saúde das populações e desafiando a ciência em todo o mundo. Realizada por uma equipe multidisciplinar de pesquisadores da Fundação, a investigação abrange os principais aspectos relacionados à Covid-19, sejam esses sociais, econômicos, estruturais ou epidemiológicos. O Boletim reúne textos analíticos, dados e infográficos que aprofundam temas como organização dos serviços de saúde, impactos da doença em profissionais da saúde e outros trabalhadores, e questões relacionadas a desigualdades raciais, povos indígenas, idosos, populações em favelas, assim como desafios referentes à bioética e à justiça social. Uma “Linha do Tempo” destaca os acontecimentos mais marcantes até o momento e um texto final sistematiza as ações da Fiocruz durante a pandemia.
O Boletim mostra que a curva da evolução de casos e óbitos por Covid-19 no Brasil apresentou, desde o início da pandemia, um padrão diferente dos outros países e alerta para a manutenção de um patamar ainda muito alto do número de óbitos no país, nos próximos meses, caso o cenário atual permaneça. O estudo revela o lento processo de aumento desses casos e a formação de um prolongado patamar de transmissão desde junho, com ligeira tendência de queda a partir de setembro. Dados das Síndromes Respiratórios Agudas (SRAGs) revelam que, mesmo com queda, o país ainda está em um patamar elevado de casos e óbitos.
Impacto na população idosa
Outubro de 2020 marca o 30º aniversário do Dia Internacional do Idoso e a 73ª Assembleia Mundial da Saúde. No entanto, os números de casos e óbitos por Covid-19 disponibilizados no boletim MonitoraCovid-19 da Fiocruz, com base no Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica da Gripe (Sivep-Gripe), não são nada animadores.
De acordo com a análise, até o início deste mês (6/10), foram notificados 210.007 casos e 100.059 óbitos de pessoas de 60 anos ou mais - o que corresponde a 53,1% do total de casos e 75,2% dos óbitos -, comprovando a maior gravidade da Covid-19 entre a população idosa. Esses números significam uma redução de 0,41% da população idosa masculina e de 0,25% da população idosa feminina, trazendo como uma das consequências demográficas da pandemia a intensificação da tendência de feminização da população idosa brasileira.
Vacinas: cautela e justiça social
A vacina contra a Covid-19 também foi abordada no Boletim. Na visão dos pesquisadores, a vacina deve ser considerada uma estratégia adicional e não ser entendida como única solução para o enfrentamento da pandemia.
O Boletim destaca ainda a importância do acesso universal à vacina e às estratégias de vacinação que deverão ser adotadas no país para que estejam alinhadas aos cenários de epidemicidade e possam contribuir para a estratégia mais ampla de enfrentamento.
Covid-19 nas favelas
Nos grandes centros urbanos, o impacto da Covid-19 nas favelas tem se mostrado mais acentuado por conta de vulnerabilidades estruturais. Segundo a análise, o fato das taxas de incidência da Covid-19 serem maiores nos bairros sem favelas ou com baixa concentração dessas, em comparação com os bairros de “altíssima concentração”, pode ser em parte explicado pelo baixo acesso à testagem pelas populações destes territórios.
Foi observado que os bairros com alta e altíssima concentração de favelas apresentam maior letalidade (19,47%), o dobro em relação aos bairros considerados “sem favelas” (9,23%). Isso indica, segundo os pesquisadores, tanto uma falta de acesso ao diagnóstico em tempo adequado, quanto problemas de acesso aos serviços de saúde de maior complexidade assistencial.
Raça e cor
No período analisado, o percentual de óbitos por Covid-19 segundo raça/cor foi de 48,2% em negros e 31,12% em brancos; porém ainda houve 20,15% “não informados” nesse quesito. Já a incidência da doença é de 44,6% em negros; de 37,04% 3,99% em amarelos; 0,17% em indígenas; e 14,19% ignorado. Na avaliação dos pesquisadores, esse resultado retrata as bases do racismo estrutural no Brasil, expresso na imensa vulnerabilização e precarização de vidas negras.
Povos indígenas e Covid-19
Os povos indígenas são particularmente vulneráveis à Covid-19 e às suas graves consequências, devido a fatores históricos e socioeconômicos. A circulação do Sars-CoV-2 no Brasil resultou em progressiva proporção de indígenas em municípios em alto risco imediato para pandemia, afetando, rapidamente, os 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI). A taxa da mortalidade entre indígenas, dependendo da faixa etária, chega a ser até 150% maior do que a de não indígenas.
Os dados disponibilizados pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) evidenciam taxas de mortalidade por Covid-19, progressivamente mais elevadas a partir dos 50 anos nos indígenas, em comparação à população geral. Esse fato traz um alerta para impactos socioculturais da pandemia: os indivíduos de mais idade são os guardiões dos conhecimentos tradicionais, línguas e da memória das lutas históricas desses povos.
Situação dos trabalhadores de saúde frente à Covid-19
Um dos grupos de maior risco de adoecimento por Covid-19 é dos trabalhadores da área da saúde. Além do contato direto e exposição a altas cargas virais, da sobrecarga de trabalho, das mudanças de protocolos e rotinas, outro fator relevante que aumentou a exposição desse grupo foi a ampliação da oferta de leitos por meio de hospitais de campanha.
Segundo o Observatório do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), em 4 de outubro de 2020, havia registro de 40.608 casos e 441 óbitos entre seus profissionais (enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem). As mulheres respondem por 85% dos casos e 63% dos óbitos, destacando que elas são 85% da força de trabalho desse segmento.
O Boletim ressalta que trabalhadores formais como, por exemplo, os de frigoríficos, foram fortemente acometidos pela Covid-19. De acordo com a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Alimentação, estima-se que cerca de 125 mil trabalhadores tenham sido infectados até o mês de agosto. Há também um grande contingente de trabalhadores formais de outros ramos com menor visibilidade e os que trabalham por conta própria ou não tem carteira assinada que vêm sendo impactados. No entanto, não há registro adequado de quais segmentos têm sido mais afetados.
Organização dos sistemas de saúde
Outro tema destacado, “A organização dos sistemas de saúde” ressalta que a desproporção entre óbitos e casos registrados expõe fragilidades acumuladas em função do subfinanciamento e problemas de gestão, reforçando a necessidade do fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS). A avaliação da capacidade instalada no país para atender pacientes graves de Covid-19 revelou as grandes desigualdades entre as regiões e a forte concentração de recursos voltados para o setor de saúde suplementar em áreas específicas.
Covid-19 e desigualdades sociais
Na abordagem sobre o Covid-19 e desigualdades sociais, é enfatizado o fato de que a pandemia deixou mais explícitas as injustiças estruturais. Segundo a análise, as diferenças observadas nos indicadores de saúde entre os mais ricos e os mais pobres, independentemente da região geográfica, deixam ainda mais claro o papel dos determinantes sociais no processo de adoecimento e morte da população mais carente.
Os pesquisadores alertam que, embora o número de casos, especialmente os fatais, venha mostrando paulatina redução, não há sinais de adesão da população às normas elementares de proteção individual.