21/10/2020
Uma pesquisa realizada pela Fiocruz Pernambuco, em colaboração com a Universidade Estadual do Colorado (CSU) dos Estados Unidos, encontrou evidências científicas da importância da transmissão sexual do vírus na epidemia de zika em Pernambuco. Trata-se do primeiro estudo brasileiro a chegar a essa conclusão e o segundo no mundo a demonstrar que a transmissão sexual do vírus da zika tem um papel muito mais importante na epidemia do que se estimava inicialmente. O primeiro foi realizado em Porto Rico (2019).
Outras investigações anteriores já haviam comprovado a existência desta forma de transmissão em localidades sem a presença do mosquito vetor, o Aedes aegypti e sem indicar qual a sua relevância na epidemia. O estudo pernambucano aponta que essa contribuição é significativa. "A via sexual não parece ser unicamente responsável pelo contágio sustentado do zika, mas associada à transmissão pelo mosquito pode contribuir significativamente para a disseminação eficiente do vírus", explica a pesquisadora Tereza Magalhães (CSU e Fiocruz PE), que coordenou o projeto, ao lado dos pesquisadores Ernesto Marques (Fiocruz PE e Universidade de Pittsburgh, EUA) e Brian Foy (CSU). A pesquisa contou com financiamento dos National Institutes of Health (NIH).
Além do cuidado metodológico para tentar enxergar a transmissão sexual de forma separada da vetorial, a equipe do projeto precisou superar um grande desafio no início da pesquisa: a redução drástica dos casos de zika, a partir de 2017 (em Pernambuco e em todo o país), que acabou inviabilizando a identificação de novos casos para se somarem à coorte do estudo. Assim, os investigadores precisaram buscar uma estratégia alternativa para o projeto, envolvendo participantes de uma pesquisa anterior, sobre diagnóstico de dengue, e moradores de suas residências. Realizado por Tereza e Ernesto entre maio de 2015 e maio de 2016, esse estudo recrutou pacientes atendidos na UPA de Paulista (PE) com sintomas sugestivos de dengue. O trabalho foi realizado em colaboração com o pesquisador da Universidade de Heidelberg (Alemanha) e CSU, Thomas Jaenisch.
O resultado foi surpreendente, pois, ao final das análises, 60% dentre os mais de duzentos e cinquenta pacientes estudados foram casos confirmados de infecções com os vírus Zika e chikungunya, sendo pouquíssimos casos de dengue. Portanto, esse estudo se revelou um importante registro do período final da epidemia de Zika e do posterior crescimento dos casos de chikungunya em Pernambuco, doenças que haviam se instalado silenciosamente na população (saiba mais sobre essa pesquisa aqui).
A partir desse conhecimento acumulado, foram convidados os participantes dessa pesquisa anterior (denominados index), seus parceiros sexuais e até mais dois moradores da mesma residência, formando uma coorte de 425 pessoas. O objetivo foi comparar, através de sorologia, a exposição prévia dos participantes aos vírus zika e chikungunya. A hipótese era que a exposição ao zika seria maior entre os parceiros sexuais, já que esse vírus é transmitido por sexo e pela picada do mosquito. A comparação com o chikungunya foi muito importante no estudo já que não é transmitido sexualmente (somente pela picada do mosquito).
Foram coletadas amostras de sangue, realizados testes sorológicos e aplicados questionários, para responder a dois tipos de análise. Primeiro foi avaliado o risco da pessoa ser positiva para zika ou chikungunya quando morando com paciente index soropositivo para o respectivo vírus, sendo ela parceira sexual ou não. Depois, esse mesmo risco foi observado em todos os pares de uma mesma residência, independente de serem formados pelo paciente index.
Os resultados apontaram que, no caso do zika, o risco de ter sido exposto ao vírus foi significativamente maior (risco relativo de 3.9) para o parceiro sexual do que para o morador no mesmo espaço que não era parceiro sexual (risco relativo de 1.2). Para chikungunya, utilizado nessa pesquisa como "controle", o resultado foi bem diferente e o risco se mostrou igual para todos os moradores (parceiros sexuais ou não; risco relativo de 2-2.5). Na segunda parte das análises, os pares sexuais das residências tiveram uma maior probabilidade de terem sorologia concordante para o zika do que os pares sem relação sexual, fato que não foi observado com o grupo chikungunya.
Foram coletados também dados clínicos retrospectivos dos participantes. Uma das informações obtidas, em relação aos participantes soropositivos para zika, é que uma menor porcentagem de pares sexuais disse que teve sintomas típicos de arboviroses, comparando com os pares não sexuais. "Isso pode indicar que, se essas pessoas dos pares sexuais foram infectadas com o zika através de relação sexual e não da picada de mosquitos, talvez a sintomatologia seja diferente de acordo com a forma de transmissão", declara Tereza, ressaltando a importância de que esse fator seja levado em conta na fase aguda da doença. "É muito importante até para o manejo clínico, pois pode ser que o médico não consiga fazer um diagnóstico correto se avaliar somente sintomas típicos", complementa.
O estudo mostrou que a transmissão sexual do zika em áreas endêmicas, associada à transmissão vetorial, pode ter sido um dos fatores responsáveis pela rápida disseminação do vírus nas Américas e em outras regiões afetadas pela pandemia em 2015/2016.
Mais detalhes sobre a pesquisa - que contou ainda com a participação das pesquisadoras da Fiocruz PE Ana Brito, Clarice Morais e Marli Tenório, além de vários estudantes e técnicos da instituição – podem ser obtidos no artigo Follow-up household serosurvey in Northeast Brazil for Zika virus: sexual contacts of index patients have the highest risk for seropositivity. Acesse o site da revista.