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21/07/2021

Risco e vulnerabilidade: quem rege a política pública?

Raphael Mendonça Guimarães, Daniel Antunes Maciel Villela e Christovam Barcellos (Pesquisadores do Observatório Covid-19 Fiocruz)


O curso recente da pandemia da Covid-19 no Brasil vem apresentando uma transição nos indicadores etários, o que em parte é resultado do sucesso da vacinação entre a população mais longeva. Desde o início da aplicação de doses, os critérios de prioridades estabelecidos no país consideraram um ordenamento progressivo por faixa etária, a iniciar pelos idosos, até alcançar os grupos de menor idade. Há grande expectativa com relação ao avanço da vacinação nas faixas etária mais jovens, e sobre a velocidade com que chegaremos a um patamar de cobertura em que a circulação do vírus será bloqueada. Concomitantemente, há diálogos recorrentes a respeito das escolhas que vêm sendo feitas para a eleição destes critérios de ordenamento. Este é um debate necessário, mas requer cuidado para que não seja contaminado por princípios utilitaristas e que se distanciem do princípio fundamental de proteção e manutenção da dignidade e da vida.

Os pesquisadores lembram que "ter comorbidades ou ser mais longevo não é determinante para apresentar formas graves de Covid-19. Mas a maior probabilidade de um evento indesejável nestes grupos é inegável" (Foto: Jonathan Lins/Agência Alagoas)
 

Em primeiro lugar, é essencial ressaltar que o direito à vida é inalienável. Dito isso, é importante considerar as etapas da campanha de vacinação, que assumiu corretamente como estratégia impedir os casos graves e fatais, primeiramente; e em seguida conter a disseminação da Covid-19. Isto significa, por um lado, que ela protege vidas e a impede a dissolução de trajetórias individuais e familiares inteiras. Por outro lado, ela evita que o sistema de saúde entre em colapso por não conseguir dar conta da catástrofe sanitária provocada pela pandemia. Este panorama, vale destacar, não é causado somente pelos casos de Covid-19, mas pela desassistência para inúmeros outros problemas de saúde em decorrência de uma “competição” das condições de outras morbidades por leitos, insumos e profissionais de saúde.

Outro aspecto de grande importância é a noção mais abrangente de risco na epidemiologia. Ela indica uma probabilidade, e não a garantia da ocorrência de um evento. Desta forma, ter comorbidades ou ser mais longevo não é determinante para apresentar formas graves de Covid-19. Mas a maior probabilidade de um evento indesejável nestes grupos é inegável. As políticas públicas, para além desta noção de risco, trabalham com outro conceito igualmente importante, e que é intrínseco às questões éticas que permeiam as decisões da saúde pública: a vulnerabilidade. A vulnerabilidade antecede o risco, pois ela determina situações de exposição que independem de forças biológicas que compõem este risco. 

As políticas públicas, incluindo as políticas de saúde, por definição são elaboradas e implementadas para reduzir iniquidades. Não estamos falando, portanto, de riscos individuais, mas de um risco global, que impactará grupos populacionais inteiros, de forma direta e indireta. Qualquer outra forma de pensar uma política pública, que tenha as decisões baseadas em riscos individuais é perigosa, pois, sob o argumento de garantir oportunidades diferenciadas de acesso, aumentarão as disparidades estruturais de um país com profundos abismos sociais. Trata-se, pois, de um equívoco conceitual dos princípios de política pública baseada em evidência, e de dois princípios fundamentais do Sistema Único de Saúde: a equidade e a universalidade. A saúde é complexa por definição, e não cabe em um cálculo atuarial. 

A vigilância em saúde no Brasil possui limitações. Não só pela garantia de acesso e qualidade dos dados, mas pela rotina diária de investigação, oportunidade de diagnóstico e adoção de medidas populacionais de controle de problemas e saúde, sejam eles eventos agudos ou condições crônicas. É preciso pensar na heterogeneidade dos municípios brasileiros, que fazem sequenciamento de dados desde o uso de poderosos softwares até planilhas manuscritas por canetas esferográficas. Que atende gestantes com recursos desde aparelhos de ultrassonografia 3D até cones de plástico para ouvir batimentos fetais. Pensar grande, a esta altura, é garantir que todos, sem exceção, desfrutem das condições mínimas de atenção. 

Aspectos como iniquidades em saúde não são, portanto, abstrações. São reais, visíveis na concretude diária. E matam. A redução está na suposição de que o risco individual, e não o efeito contextual, é suficiente para definir quem vem primeiro na fila da vacinação, e mitigar a maior crise sanitária dos últimos 100 anos. 

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