04/04/2023
Cristiane Albuquerque (COC/Fiocruz)
Imensos painéis didáticos com ilustrações científicas feitas à mão, em papel cartão unido com tecido, impressionam pela riqueza de cores e detalhes. Insetos vetores, ciclos evolutivos de enfermidades e as consequências de doenças são retratados nos “modelos de aula” que eram apresentados aos alunos do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz). O amarelado natural das folhas, as tintas envelhecidas e alguns pequenos amassados compatíveis com o manuseio dão a dimensão da importância histórica do material, da década de 1940, e que integra o acervo do cientista Herman Lent, que será preservado pela Fiocruz.
Sob a guarda da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) - instituto da Fiocruz dedicado à memória, à história, ao patrimônio cultural e à divulgação das ciências e da saúde - o acervo possui materiais e transparências de aula, documentos, negativos de vidro, anotações e objetos pessoais, livros, diários e mais de 300 itens iconográficos, como desenhos, fotografias e imagens impressas, que ajudam a contar não só a trajetória profissional de Herman Lent, como também a história da instituição e das ciências e da saúde no Brasil.
Datados da década de 1940, imensos painéis didáticos com ilustrações científicas feitas à mão, em papel cartão unido com tecido, impressionam pela riqueza de cores e detalhes (foto: Glauber Gonçalves)O material soma-se ao Fundo Herman Lent, doado por seu filho, Roberto Lent, em 2005 e disponível para consulta online na Base Arch, que, a partir de documentos, recortes de jornais, inquéritos, punições, indagações e cartas, traduz a mobilização e a resistência dos cientistas durante o episódio conhecido como Massacre de Manguinhos, que completa 53 anos neste sábado, 1º de abril. Na ocasião, dez pesquisadores do IOC/Fiocruz foram cassados pela ditadura militar (1964-1985).
Esta segunda remessa do acervo passará por todos os processos de higienização, condicionamento, classificação e descrição dos dossiês na Base Arch. Após a última etapa, que consiste na descrição dos itens e sua inserção na Base, os documentos recebidos pela Casa em 2021 também ficarão abertos à consulta pública e liberados para acesso.
Ilustrações científicas de insetos vetores, como o barbeiro, transmissor da doença de Chagas, fazem parte do acervo do cientista Herman Lent (foto: Glauber Gonçalves)
“Este material garante elementos para produção de conhecimento relacionado às diversas áreas. Quando essa parcela do acervo for disponibilizada ao público no futuro, espera-se que seja possível perceber os dados sobre a trajetória do cientista de uma forma mais ampla, inspirando, inclusive, novos projetos de pesquisa”, aponta Ana Roberta Tartaglia, chefe do Departamento de Arquivo e Documentação da Casa.
Memórias do Massacre de Manguinhos preservadas no Fundo Herman Lent
Chefe da Divisão de Zoologia na década de 1960, Herman Lent entrou para o IOC como estagiário do helmintologista Lauro Travassos (1980-1970), em 1933, para atuar na área de helmintologia. Posteriormente, iniciou pesquisas entomológicas, sob influência do entomologista Arthur Neiva. Anos mais tarde, foi reconhecido internacionalmente por seus estudos sobre insetos triatomíneos, popularmente conhecidos como barbeiros, transmissores da doença de Chagas.
A intensa produção científica e a liderança de grupos de pesquisa não são os únicos atributos que chamam a atenção na trajetória de Herman Lent. O cientista também é importante personagem da história da Fiocruz durante os ‘anos de chumbo’. O motivo é que, o pesquisador – perseguido durante a ditadura militar - possuía uma visão de instituição incompatível com a repressão do governo ditatorial.
Entre as ideias defendidas por Herman Lent e os demais pesquisadores cassados - que pautavam os debates e conversas nos corredores da instituição estavam a necessidade de formulação de uma política de ciência para o país, a gestão participativa, representatividade e modernização dos processos de decisão institucionais, de captação de recursos, de formação de recursos humanos e a criação do Ministério da Ciência e da Tecnologia.
No entanto, esses ideais progressistas, as linhas de pesquisa, cursos e coleções científicas começaram a ser desmontadas progressivamente após o Golpe de 1964, quando intervenções e inquéritos conduzidos pelo regime militar foram instaurados no Instituto Oswaldo Cruz (IOC), delineando um dos períodos mais sombrios que a instituição atravessou e que resultou em danos significativos para o desenvolvimento científico no Brasil.
Cadernos com anotações do cientista também compõem e acervo (foto: Glauber Gonçalves)
Nas palavras de Lent – em entrevista de 1977 concedida à Fundação Getúlio Vargas (FGV) – entre 1964 e 1970, quando a repressão aos cientistas aumentou, culminando na suspenção dos direitos políticos, foram seis anos de agonia, “com muita briga e muito tempo perdido”. Perda de autonomia política, financeira, falta de recursos e formação de grupos que divergiam entre si faziam parte do cenário.
Com experiência na área de História das Ciências e da Saúde Pública no Brasil, a cientista social Wanda Hamilton conta que não foi coincidência o fato de os cientistas terem sido cassados em 1970, já que Rocha Lagoa, que era pesquisador do IOC e estava alinhado às ideias anticomunistas defendidas pelos militares, foi nomeado ministro da Saúde, cargo que ocupou por dois anos.
Em entrevista realizada na década de 1980, em virtude do projeto da Fiocruz de história oral Memória de Manguinhos, Lent contou à pesquisadora que, além das divergências políticas, “havia uma inimizade pessoal entre alguns dos pesquisadores cassados e o então ministro”. Hamilton podenra, no entanto, que a divergência em torno ao projeto institucional foi o fator que determinou a cassação dos cientistas, apesar de alguns deles terem diferenças pessoais com Rocha Lagoa. “Sem dúvida, o ministro se aproveitou do perfil autoritário do governo militar e do AI-5 para afastar os cientistas do IOC”, destaca.
Wanda lembra que os prejuízos decorrentes da cassação extrapolaram a esfera individual: “A ditatura não só cassou dez pesquisadores, foram dez líderes, chefes de laboratórios e de divisão. Isso desarticulou a instituição, impactando em sua conformação, com a destruição de laboratórios inteiros, cursos de formação e linhas de pesquisa em áreas que eram, inclusive, escolas dentro do IOC, como a fisiologia e a entomologia, linha de estudo ao qual Lent se dedicava”.
Como a cassação não impedia a atuação dos cientistas, promulgaram um novo ato que decretava a aposentadoria e os proibia de desempenhar atividades em qualquer instituição que recebesse financiamento do governo. Em 1972, Lent foi para a Venezuela para desempenhar o cargo de professor de pós-graduação da Universidade de Los Andes, onde permaneceu por dois anos. Nesta mesma época, a declaração do ministro da Saúde, Paulo de Almeida Machado, a um jornal do Rio refletia a visão do governo e a situação da Fiocruz: “Cadáver insepulto na Avenida Brasil”.
Apesar da destruição iniciada pelo golpe militar, o rico acervo de Herman Lent foi preservado pelo próprio cientista, que levou consigo o material ao sair do IOC, em 1970. A partir de 1976, o acervo permaneceu sob os cuidados do cientista nas dependências da Universidade Santa Úrsula, instituição que o acolheu após o seu retorno ao Brasil. Posteriormente, a guarda do acervo passou para a sua orientanda e colega de trabalho, Cláudia Portes, que acomodou o acervo em sua sala, no Pavilhão Lauro Travassos, localizado no campus da Fiocruz em Manguinhos, no Rio de Janeiro.
Dez cientistas do Instituto Oswaldo Cruz foram cassados pela ditadura em 1º de abril de 1970, espisódio conhecido como Massacre de Manguinhos (imagens: Acervo COC/Fiocruz)
Registros dos primeiros momentos do processo de redemocratização do Brasil - iniciado no fim dos anos 1970, com a Lei da Anistia (6.683/1979) - e da reintegração dos cassados de Manguinhos à Fiocruz já podem ser vistos nos documentos disponíveis no Fundo Herman Lent. Nota do Informe do Jornal do Brasil, de 17 de maio de 1985, destacava: "Ministro da Saúde, Carlos Sant'Anna dúvida anuncia que vai promover a reintegração à Fundação Oswaldo Cruz dos cientistas que foram demitidos e cassados em 1970".
Alinhado ao processo de abertura política, houve um movimento interno na Fiocruz para indicar o nome de Sérgio Arouca para presidente da instituição. O sanitarista assume a presidência da Fiocruz em 1985, onde permaneceu até 1989. Uma das bases centrais para a gestão de Arouca era reparar a injustiça que a ditadura militar havia feito com os dez cientistas cassados. “Só vamos ser uma instituição democrática, aberta, livre no pensamento, na ciência, quando a gente reparar essa injustiça”, defendia.
O dia 15 de agosto de 1986 marcou o retorno dos cientistas cassados pela ditadura: Haity Moussatché (1910-1988), Herman Lent (1911-2004), Moacyr Vaz de Andrade (1920-2001), Augusto Cid de Mello Perissé (1917-2008), Hugo de Souza Lopes (1909-1991), Sebastião José de Oliveira (1918-2005), Fernando Braga Ubatuba (1917-2003), Tito Arcoverde de Albuquerque Cavalcanti (1905-1990), Masao Goto (1919-1986) e Domingos Arthur Machado Filho (1914-1990), foram reintegrados à instituição em cerimônia realizada em Manguinhos. “Eu estava lá! A cerimônia foi linda e muito emocionante. Nove, dos dez cientistas cassados, participaram do evento. Apenas Tito Arcoverde não estava presente. Na ocasião, Lent foi reintegrado, preferiu permanecer na Santa Úrsula em retribuição abrigo que a universidade lhe deu após ser aposentado”, relata Wanda.
Grupo de pesquisadores cassados em 1970 pela ditadura militar foi reintegrado em cerimônia realizada na Fundação Oswaldo Cruz em 1986 (foto: Acervo COC/Fiocruz)
Ao falar sobre a importância da doação do acervo à instituição, Hamilton lembra que, no final da década de 1980, os documentos do cientista foram importantes para a produção de um artigo sobre os cassados, de sua autoria, intitulado Massacre de Manguinhos: Crônica de Uma Morte Anunciada. "O Herman Lent me emprestou um material riquíssimo que me serviu de fonte de pesquisa. A incorporação desse acervo à Casa de Oswaldo Cruz vai permitir olhar para a trajetória do indivíduo, da ciência do Brasil e da Fiocruz, a partir de vários pontos de vista", destaca.
Passado e presente unidos pela memória
Na avaliação de Wanda Hamilton, algumas conquistas da Fiocruz após o ano de 1986 são fruto da visão de mundo dos pesquisadores, gestores e funcionários que atuaram durante o golpe militar e também das experiências do passado que fragilizaram a instituição. Somado a isso, a gestão Arouca tinha uma pauta política muito clara e definida de democratização.
“A memória possui esse papel de relembrar o que aconteceu para não permitimos que se repita. Se atualmente nós temos a Fiocruz fortalecida, com eleições, gestão participativa, Conselho Deliberativo, Congressos Internos para consensuar políticas que protegem e fortalecem a instituição, inclusive de intervenções externas, é porque foi possível preservar e revisitar essa história e memória, que contribuem para indicar caminhos essa história”, ressalta.