18/09/2024
Ferramentas modernas de genômica, análise geoespacial e estatística, aplicadas a dados históricos armazenados pelo Serviço de Referência Nacional em Peste (SRP) da Fiocruz Pernambuco, estão permitindo um olhar mais acurado sobre a dinâmica dessa zoonose no Brasil - onde a peste bubônica segue como uma ameaça silenciosa, embora não apresente casos de transmissão para humanos desde 2005. Seu agente causador, a bactéria Yersinia pestis, pode estar presente em animais silvestres de vários municípios das regiões Nordeste e Sudeste, com potencial para causar novos surtos, se o sistema de vigilância não atuar de forma preventiva, eficiente e estruturada. O artigo com resultados dessa iniciativa está disponível na edição de setembro da revista Emerging Infectious Diseases, editada pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), dos Estados Unidos.
Com uma abordagem interdisciplinar, o estudo revelou novos aspectos da relação entre a dinâmica da peste e fatores como precipitação, vegetação, relevo e ecologia. “Esses resultados oferecem implicações importantes para compreender as condições ambientais que favorecem a disseminação da zoonose tanto em seres humanos quanto na vida selvagem”, explica o pesquisador da Fiocruz Pernambuco Matheus Bezerra, primeiro autor do artigo.
Entre os achados da pesquisa, a peste apresentou um forte componente sazonal, predominando em meados do segundo semestre, em seguida à expansão das populações de roedores (reservatórios) e das pulgas (principais vetores da doença). Outro aspecto observado foram as taxas de positividade para peste em roedores e/ou pulgas, que se correlacionaram linearmente com o número de casos humanos no mesmo ano e se mostraram um alto preditor de risco para casos humanos.
No estudo, o risco de peste em humanos foi associado a maiores taxas de precipitação e de cobertura vegetal, assim como a áreas de menor altitude, próximas aos setores côncavos na base dos terrenos elevados (chapada). Considerando resultados como este, é possível focar o esforço de vigilância nas áreas que concentram a disseminação da doença tanto nos roedores silvestres quanto na população humana. “Os resultados encontrados servem para redirecionar os esforços da vigilância para as áreas de maior risco, aumentando sua efetividade e ao mesmo tempo, reduzindo seu custo. Os padrões observados podem ser aplicados a outras regiões além dessa da pesquisa”, declara a pesquisadora da Fiocruz Pernambuco Marise Sobreira, integrante do estudo e do rol de autores do artigo.
Os dados utilizados nessa pesquisa foram coletados entre 1961 e 1980, na região pernambucana da Chapada do Araripe. O local é um marco geológico e cultural do Nordeste brasileiro, que enfrentou severas epidemias de peste bubônica no século 20 e foi considerada o epicentro da doença no Brasil durante a década de 1960. Essa região, abrigou o Plano Piloto da Peste, liderado pelo Governo Federal e pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que reuniu uma equipe de especialistas para realizar pesquisas sobre a epidemiologia da doença na região. A pesquisadora da Fiocruz PE, Alzira Almeida, atualmente coordenadora do SRP, integrou esse plano piloto e protagonizou o isolamento e a manutenção em laboratório de culturas da Yersinia pestis que hoje integram o acervo das Coleções Biológicas da Fiocruz com a denominação Fiocruz/CYP.
A Coleção de Yersinia pestis (Fiocruz/CYP) faz parte das 36 Coleções Biológicas reconhecidas pela Fiocruz e gerenciadas pela Vice-Presidência de Pesquisa e Coleções Biológicas (VPPCB/Fiocruz). As Coleções promovem atividades que incluem a aquisição, preservação, identificação, catalogação e distribuição de micro-organismos autenticados para dar suporte à pesquisa científica, estudos epidemiológicos, bem como ao desenvolvimento e produção de bioprodutos para diagnóstico, vacina e medicamentos, atuando também como provedores de serviços especializados.
A Fiocruz/CYP é a única coleção localizada na Fiocruz Pernambuco e reconhecida como referência em suas culturas. A manutenção da coleção permite pesquisas avançadas para diferentes propósitos, como explica a coordenadora executiva das Coleções, Aline Souto. “As Coleções Biológicas da Fiocruz têm papel fundamental na preservação adequada de materiais e seus dados associados, garantindo a manutenção das características genéticas dos exemplares ao longo do tempo, que pode contribuir em diversas pesquisas, como a publicada neste artigo. O material preservado pela Fiocruz/CYP ao longo de décadas possibilitou ao grupo do IAM buscar informações e aprofundar o conhecimento sobre a dinâmica da peste bubônica no Brasil”.