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10/10/2007

Reflexão histórica sobre o alcoolismo pode servir para embasar políticas públicas

Fábio Iglesias


Associada aos prazeres gastronômicos, às comemorações e, mesmo na propaganda, a um divertido convívio social, a bebida alcoólica sempre cumpriu uma tradição ritual. Mas o consumo abusivo é apontado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como a causa de 3,7% das mortes em todo mundo (2,3 milhões de pessoas, em 2002). Os padrões de consumo e a exposição ao álcool em idades cada vez mais precoces são alvos de recentes ações governamentais, em função do aumento de dependentes da substância (de 11,2% em 2001 para 12,3% de brasileiros em 2005, na faixa etária de 12-65 anos) e pelo grande número de acidentes de trânsito (61% dos acidentados ingeriram bebidas alcoólicas segundo pesquisa feita em 2006 pela Associação Brasileira de Medicina do Tráfego).


 Trabalho do cartunista J. Carlos incluído na exposição <EM>Bar - serigrafias de humor</EM>

Trabalho do cartunista J. Carlos incluído na exposição Bar - serigrafias de humor


Mas as crenças sobre os efeitos do álcool variaram muito. No século 19, pequenas doses eram prescritas a pacientes com febre, tísica pulmonar, tuberculose e em indivíduos com problemas de digestão. Também foi considerado alimento tonificante e, por isso, incluído na ração do escravo africano. Diante da falta de uma definição precisa para o quadro de sintomas da doença, a terapêutica variou do tradicional repouso e boa alimentação ao internato em hospícios. Para o historiador da Casa de Oswaldo Cruz (uma unidade da Fiocruz) Fernando Dumas, a reflexão histórica sobre a doença é importante para a desmistificação do alcoolismo e para melhor embasar políticas sobre o tema.


De hábito à patologia


A partir da análise de teses sobre o alcoolismo, defendidas entre 1830 e 1920 na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (FMRJ), Dumas contextualizou as mudanças ocorridas na medicina e as críticas à terapêutica no Ocidente. Constatou intrigantes coincidências, como o surgimento da expressão alcoolismo, criada pelo médico sueco Magnus Huss, em 1849, durante as mudanças tecnológicas que caracterizaram a 2ª Revolução Industrial.


"Com a utilização do sufixo ismo, Huss enquandrou o alcoolismo na categoria de doenças provocadas por intoxicação. Como o rol de métodos e de técnicas de pesquisa disponível não lhe permitiu ir além da criação de uma espécie de corpo de lesões alcoólicas, o tom nasceu ambíguo. Ele mesmo acreditava que bebidas alcoólicas tinham propriedades capazes de combater a tuberculose", afirma.


Para o historiador, foi durante a construção de novos processos de trabalho que surgiu a "medicalização dos costumes". O que se pretendia era construir e manter uma outra "ordem", re-inventar tradições, e, fundamentalmente, forjar o novo trabalhador. "Durante essas transformações, as noções de higiene e saúde buscaram explicar e ajustar o mundo aos padrões sociais que cristalizavam um novo modo de vida", explica.


A figura do bêbado deixou de ser construída em torno de artistas e intelectuais desajustados ou de apenas representar o constrangedor fardo de parentes e amigos para freqüentar o mundo do trabalho. Momento em que o processo de higienização foi rigoroso. Estivesse cumprindo responsabilidades profissionais ou mesmo descansando, o cidadão não mais era ditado por um "tempo natural", mas pelo tempo fabril, e tinha que concentrar suas energias para produzir. Excessos que resultassem em faltas, acidentes ou em reações que não combinassem com um ambiente profissional deviam ser banidos.


Do corpo para a mente


Dumas verificou como os médicos brasileiros incorporavam as descobertas européias do século 19. Já era evidente que o alcoolismo agudo provocava lesões físicas, como equimoses (infiltração de sangue nos tecidos) no estômago; hiperemia (aumento da quantidade de sangue circulante) dos rins e hemorragias pulmonares.


Aliadas às observações obtidas no convívio com os pacientes, as investigações clínicas passaram a focar as ações dos nervos, numa tentativa de identificar a origem de diversos tipos de impulso. Herança das idéias defendidas nos trabalhos de Philippe Pinel e de seu discípulo Jean-Étienne Esquirol. Seguindo essa linha, médicos brasileiros pesquisavam as repercussões do consumo de bebidas sobre o sistema nervoso e, em particular, o cérebro.


Ainda em meados do século 19, o doutor Caetano de Azevedo descreveu as pertubações provocadas pelo álcool e afirmou que duas manifestações eram recorrentes: o delirium tremens e a loucura lipemaníaca, que consistia no surgimento de estados depressivos de melancolia mórbida. Sintomas que, aliados aos delírios, à insônia e às eventuais sensações de perseguição, compunham um quadro clínico praticamente idêntico ao do louco.


Assim, portador de uma patologia mental, o alcoólatra passou a ser tratado no hospício, onde choques elétricos eram usados para diagnosticar algumas perturbações dos nervos e para reativar funções cerebrais. Foi desse espaço que o jornalista e escritor Lima Barreto, internado entre 1914 e 1919 em diversos hospícios por conta do abuso do álcool, descreveu as impressões publicadas no livro O cemitério dos vivos:


"Eu queria um grande choque moral, pois físico já os tenho sofrido, semimorais, como toda a sorte de humilhações também. (...) Que dizer da loucura? Mergulhado no meio de quase duas dezenas de loucos, não se tem absolutamente uma impressão geral dela. (...) Há uma nomenclatura, uma terminologia, segundo este, segundo aquele. (...) Todas estas explicações me parecem absolutamente pueris. (...) Até hoje tudo tem sido em vão, tudo tem sido experimentado; e os doutores mundanos ainda gritam nas salas diante das moças embasbacadas, mostrando os colos e os brilhantes, que a ciência tudo pode".


Da liberdade à censura


O reconhecimento da dificuldade de enquadrar os doentes nos abrangentes parâmetros construídos resultou na implementação de instrumentos legais, sob a fiança médica, para punir os infratores. Na França oitocentista, a incapacidade do bêbado em gerir seus próprios hábitos fazia com que os tribunais considerassem o uso do álcool como atenuante. No mesmo período, na Inglaterra, pessoas embriagadas eram responsabilizadas por todos os crimes que cometiam nesse estado.


Em princípios do século 19, na Suécia e na Noruega, desenvolveu-se o chamado Sistema de Gotemburgo, que regulamentava a produção de álcool. O objetivo era "diminuir o consumo e as tentações, reduzindo o número de estabelecimentos, dificultando o consumo com o aumento do preço das bebidas e transformando antigas casas de bebidas em espaços sem comodidades e que fechavam cedo", segundo o doutor Arantes, em 1907.


Hoje, países como França, Noruega, Suíça, Índia e Venezuela proíbem integralmente a propaganda de bebidas alcoólicas na televisão. Parte dos Estados Unidos só permite a venda e o consumo de álcool para maiores de 21 anos. Chile e diversos outros países europeus regulam o comércio de bebidas alcoólicas fixando limites de horário para o funcionamento de bares, a fim de manter o consumo moderado.


A OMS estabelece que o consumo de álcool aceitável é de até 15 doses por semana para os homens e 10 para as mulheres, sendo que uma dose contém de oito a 13 gramas de etanol (285 ml de cerveja, 120 ml de vinho e aproximadamente 30 ml de destilados, como uísque e vodka). E, segundo a ONG Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (Cisa), o National Institute of Alcohol Abuse and Alcoholism (NIAAA) afirma que a definição de consumo moderado varia de acordo com as diferenças individuais, como tolerância, metabolismo, vulnerabilidade genética, estilo de vida e tempo em que o álcool é consumido.


Variáveis que impedem, segundo Dumas, a criação de fronteiras precisas para a doença. Com a distância de 158 anos da invenção do termo alcoolismo, feita por Huss, o que permanece é a vinculação de um espaço de lazer com o uso do álcool. Para ele, que investiga há duas décadas a evolução das idéias médicas sobre o hábito de beber, a melhor definição para o alcoolismo é a da doença de costumes.

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