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14/05/2007

Lição da pré-história: mudança climática afeta a saúde

Fernanda Marques


O impacto para a saúde de mudanças climáticas ocorridas no passado foi comprovado por uma pesquisa da Fiocruz. Conduzido pela equipe do Laboratório de Paleoparasitologia da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp), o estudo verificou que uma forte mudança do clima no Piauí há dez mil anos alterou a distribuição espacial de parasitos do gênero Trichuris, verme cujo ovo depende do solo para se tornar infectante. A descoberta contou não só com o faro científico, mas também com uma pitada de sorte da bióloga Luciana Sianto.


Há dez mil anos, o Piauí tinha uma paisagem bem diferente da atual: no lugar da aridez da caatinga, a região era coberta de mata e tinha umidade elevada. O grupo do Laboratório de Paleoparasitologia havia constatado que essa transformação da paisagem provocara o desaparecimento da infecção por Trichuris, conforme análises de coprólitos (fezes fossilizadas) de roedores conhecidos como mocós, típicos da região. Coletados no Parque Nacional da Serra da Capivara, coprólitos de mocós anteriores à grande mudança climática apresentavam ovos do parasito, enquanto no material mais recente, posterior à transformação, não foram encontrados vestígios de Trichuris.


Tudo levava a crer que o parasito não resistiu em um ambiente mais seco. Novo dado que ajuda a compreender melhor o que aconteceu foi obtido por Luciana, quase por acaso, no início de seu doutorado, em 2005. Como, para sua tese, a bióloga analisa coprólitos provenientes do Parque Nacional da Serra da Capivara, lá estava ela para acompanhar o trabalho da equipe do Laboratório de Ecologia da Ensp e fazer um estudo de campo. Aproveitou a viagem para conhecer uma nova reserva criada na região, o Parque Nacional da Serra das Confusões, onde o clima é um pouco mais úmido do que o da Serra da Capivara. Durante a visita ao novo parque, Luciana encontrou fezes atuais de mocó e resolveu coletar uma amostra.


De volta ao laboratório da Fiocruz, no Rio, a bióloga analisou o material e, para sua surpresa, identificou ovos de Trichuris. “Esse achado indica que, embora o parasito não tenha resistido na área do Parque Nacional da Serra da Capivara, onde a umidade diminuiu muito, ele conseguiu sobreviver na Serra das Confusões, porque lá o clima não se tornou tão seco”, explica Luciana, que divulgou o novo dado em um congresso no México, no ano passado, ocasião em que o trabalho foi premiado entre os melhores apresentados.


Coprólitos e restos alimentares


Apesar dos bons resultados, Trichuris e mocós não são as prioridades de Luciana, que, neste momento, está desenvolvendo uma tese de doutorado sobre as ocorrências no passado das zoonoses, infecções ou doenças de animais vertebrados transmitidas ao homem em condições naturais. Ela já analisou cerca de uma centena de coprólitos de animais e humanos coletados no Parque Nacional da Serra da Capivara – área riquíssima em sítios arqueológicos. Parasitos zoonóticos já foram detectados nas amostras, enviadas ao Laboratório de Paleoparasitologia por arqueólogos da Fundação do Homem Americano. O coprólito mais antigo analisado por Luciana até agora tem cerca de 30 mil anos.


Em suas análises, a bióloga investiga nas fezes fossilizadas não só a presença de parasitos, mas também a de restos alimentares. Estes, além de revelar hábitos alimentares de nossos antepassados, podem oferecer outras pistas. Imagine um parasito transmitido a mamíferos, como roedores e humanos, pelo consumo de peixe cru. Se o parasito é encontrado no coprólito humano junto com vestígios de roedor, é sinal de que o homem ingeriu um animal infectado e foi portador daquele parasito, porém, provavelmente, não contraiu a doença. Por outro lado, se o coprólito humano apresentar vestígios de peixe, são maiores as chances de o homem ter ficado doente.


Esse exemplo não é fruto da imaginação. Pioneira no Brasil na análise de restos alimentares em coprólitos, Luciana se deparou com situação semelhante durante seu mestrado, quando estudou fezes fossilizadas retiradas de um indivíduo mumificado oriundo de Minas Gerais, que viveu entre 600 e 1.200 anos atrás. No material, ela encontrou muitos ovos de Echinostoma, parasito transmitido a mamíferos pelo consumo de peixe cru, comum na Ásia, porém raríssimo no Brasil – o único registro de infecção humana no país até hoje foi esse feito por Luciana em sua dissertação de mestrado, concluída em 2004. Além dos ovos do Echinostoma, a pesquisadora encontrou no coprólito restos de peixe, o que sustenta que a múmia realmente contraiu a infecção.

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