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14/06/2013

‘A aprovação do PL 7.663 sobre a questão das drogas seria uma aberração’

Bruno Dominguez


A aprovação na Câmara dos Deputados, em 22 de maio, do Projeto de Lei 7.663/2010, que altera a Lei de Drogas, acendeu o alerta vermelho para quem defende uma política avançada de drogas no país. O texto prevê a internação involuntária de dependentes e aumento da pena para traficantes. “O projeto é um acinte e sua aprovação no Senado seria um retrocesso imenso”, avalia o presidente da Fiocruz e da Comissão Brasileira sobre Drogas e Democracia (CBDD), Paulo Gadelha, em entrevista à revista Radis. Para ele, a forma repressiva, judicializada e criminalizada de lidar com a questão “é e sempre será contraproducente”. Por isso mesmo, defende que o setor Saúde esteja no centro de uma nova política de drogas, em que as ações de remoção de usuários de crack de territórios e a internação compulsória de dependentes não sejam o eixo central. Nesse cenário, a Fiocruz tem papel relevante: “Pelo nosso lugar de interface entre saúde, ciência e tecnologia, temos de oferecer de maneira organizada a reunião de competências, estudos e evidências, para ajudar na conformação de políticas”, afirma Gadelha.

Em diversas reportagens veiculadas na Radis, especialistas apontam que o modelo proibicionista de combate às drogas falhou. O senhor concorda?

Gadelha: Primeiro, um ponto importante a se demarcar é que o conceito de drogas lícitas e ilícitas é totalmente arbitrário: não tem embasamento em evidências científicas, que mostrem as repercussões para a saúde e para outras questões da vida. O exemplo mais óbvio dessa definição arbitrária é o álcool, que tem repercussão enorme na saúde do ponto de vista individual e coletivo, com efeitos muito significativos sobre dependência, doenças cardiovasculares, internações, mortes, violência, desagregação de estruturas societárias. O álcool já foi uma droga considerada ilegal, à época da Lei Seca nos Estados Unidos [de 1920 a 1933]; hoje, é legal, lícita, enquanto outras drogas que também têm efeitos deletérios sobre a saúde, como é o caso da cocaína e da maconha, são consideradas ilegais. Nada do ponto de vista científico ou social fundamenta essa distinção. Ela é dada pela representação social construída dessas drogas e pela maneira como a sociedade decidiu determinar que parte do circuito de produção de drogas entrasse para o campo da ilegalidade, com todas as consequências que isso gera: tráfico, tráfico de armas associado e controle de territórios para circulação de drogas, especialmente na América Latina.

Isso mostra a importância de se ouvir o setor da saúde...

Gadelha: Sim, o segundo ponto é que a principalidade da abordagem deve ser da saúde. Porque, em última instância, nós (da saúde) queremos produzir efeitos sobre a qualidade de vida, a saúde das pessoas, os processos de integração social, os processos de democracia. São as estruturas da saúde, da educação e a discussão da sociedade que têm centralidade para tratar das maneiras de se lidar com os riscos, a que toda a coletividade está sujeita, seja avaliando a relação custo-benefício e conciliando uso com manutenção da integridade pessoal e social, ou via abstinência, quando eventualmente o fator de risco causa efeitos catastróficos.

Hoje, quem tem a centralidade nas políticas de drogas é a segurança, não a saúde.

Gadelha: Exatamente. Toda a visão de combate às drogas, de guerra às drogas, foi construída sobre premissas insustentáveis. A primeira é a de que é possível se ter um mundo sem drogas. Isso é uma grande bobagem. Quando falamos sobre drogas, estamos falando sobre riscos, aos quais todas as pessoas estão sujeitas: drogas, comidas e hábitos não saudáveis. Sempre haverá uso de drogas lícitas ou ilícitas. É inimaginável se pensar — e a História mostra isso — que ninguém vai optar pelo uso de produtos que têm um grau de risco para a saúde. A segunda premissa é a de que a ênfase deveria estar no aparato repressivo. Os resultados até aqui, reconhecidos por agências internacionais e por países que enfrentaram essa questão de maneira mais ampla, foram o aumento do consumo de drogas, da violência e das doenças relacionadas, a consolidação e o reforço das estruturas para-legais de tráfico... Todos os indicadores mostram o fracasso da chamada guerra às drogas, que os Estados Unidos começaram a pilotar na década de 1960, quando a circulação, o consumo e os efeitos eram relativamente pequenos. As drogas estavam associadas a estilos de vida que contestariam o modo de vida americano. Logo, o combate era de natureza ideológica, de valores.

E no Brasil?

Gadelha: No Brasil, tivemos uma pequena evolução, mas significativa, na legislação: a distinção entre usuário e traficante. O usuário não pode ser criminalizado ou penalizado por usar drogas. O país entendeu que o usuário demanda e merece cuidado, não criminalização, pois não é um criminoso, mas alguém que possivelmente passou de uma situação de uso — digamos — recreativo, sem dependência, para um uso com dependência, que afeta sua saúde. Criminoso é o traficante. O problema é que essa legislação não estabeleceu como distinguir usuário de traficante. Portugal, por exemplo, quantificou, para cada tipo de droga ilícita, o que é permitido portar para uso próprio. Isso o Brasil não fez, o que coloca a responsabilidade sobre as mãos de juízes e policiais, gerando um nível de arbitrariedade imenso e enormes distorções. Sem critérios objetivos, as classes sociais mais vulneráveis, em função do preconceito e da baixa capacidade de defesa nos processos judiciais, acabam sendo aquelas sobre as quais incide toda a pecha de traficantes. Muitas vezes, um negro, morador de uma comunidade, portando determinada quantidade de maconha, é preso como traficante, enquanto um branco, de classe abastada, com a mesma quantidade, é considerado apenas usuário e não recebe penalização.

O senhor citou o exemplo de Portugal, país muito mencionado como tendo uma política avançada nessa área...

Gadelha: Portugal é um bom exemplo, mas não um exemplo isolado. Hoje, o próprio Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime reconhece a necessidade de mudanças no enfrentamento das drogas. Mesmo nos Estados Unidos, onde está mais arraigada a guerra contra as drogas, começamos a ver uma revisão da política em alguns estados, com maior flexibilização e descriminalização da maconha. Portugal tem sido colocado como exemplo muito significativo porque descriminalizou o uso de drogas. O tráfico continua sendo crime, sujeito a penalidades severas. Eventualmente, quando o uso é considerado nocivo, uma comissão acompanha o caso e pode recomendar tratamento ou impor uma pena administrativa. Há toda uma regulação que traz o enfrentamento para o campo civil — não penal, não jurídico. Os resultados são excelentes. Não houve, como chegou a ser muito alardeado à época da aprovação da política, explosão do uso: os índices praticamente se mantiveram. Hoje, o próprio aparato policial defende a atual legislação. O sistema prisional se beneficiou muito, com grande diminuição das prisões; houve redução de efeitos sobre doenças relacionadas, como a aids por compartilhamento de seringas; a política de redução de danos está vigente.

Em que medida o Brasil pode adotar política similar?

Gadelha: Há toda uma conformação que mostra que essa experiência deve ser estudada e pensada como referência. Cada país tem sua cultura, sua dinâmica, mas o pano de fundo é comum. No caso do Brasil, na saúde em especial, tivemos situações que são exemplares, como a da aids. Quando a doença surgiu, a primeira reação da sociedade foi discriminar, considerar como epidemia gay, encontrar culpados, gerar situações excludentes, marginalizar, criar tabu em vez de tratar abertamente o tema. E tudo foi superado com um processo intenso, com participação de organizações de pacientes, gestores de saúde pública, agências internacionais. Encaramos o tabu, debatemos a sexualidade, enfrentamos com respeito as visões religiosas, distribuímos medicamentos... Ou seja, o Brasil fez um movimento inverso do que faz com as drogas. A pessoa que precisa de tratamento por causa do abuso de drogas, se for de uma situação mais vulnerável, terá muita dificuldade. Porque vai temer se apresentar ao serviço e ser identificada como criminosa. Porque os profissionais de saúde e toda a sociedade têm preconceito e não sabem acolher. Mesmo quando o serviço está disponível, as pessoas não vêm, ainda que com a garantia de sigilo. E por isso mesmo uma alternativa são as clínicas de rua, que chegam onde as pessoas estão. Essa forma repressiva, judicializada e criminalizada é e sempre será contraproducente para quem precisa.

Como vê iniciativas como a do Projeto de Lei 7663/2010, prevendo a criação de um cadastro de usuários de drogas, a internação involuntária de dependentes e o aumento da pena para traficantes?

Gadelha: O projeto, em sua formulação original, é um acinte e sua aprovação seria, sim, um retrocesso imenso. O texto é uma agressão a uma série de princípios muito caros para nós, defensores do SUS. Reforça a ideia de criminalização, ao aumentar a pena do pequeno traficante de cinco para oito anos de cadeia. Cria um absurdo cadastro de usuários, que determina que escolas fichem alunos usuários ou sob suspeita de uso de alguma droga. Institui um sistema paralelo (não ligado ao SUS ou ao Suas), com financiamento próprio, para atendimento. Tem como primeira linha de cuidado a internação compulsória e não voluntária de usuários. Ou seja, em todos os sentidos, é uma grande aberração, fere o que conseguimos construir nesse tempo.

Nós, do Conselho Deliberativo da Fiocruz, por unanimidade, divulgamos um manifesto solicitando a retirada de pauta do projeto, para haver no mínimo um debate sério, com a discussão de todos os contraditórios pela sociedade. É inimaginável que o Congresso Nacional, por descuido ou por uma lógica incompreensível a qualquer pessoa de bom senso, tenha dado caráter de urgência à aprovação de um projeto desse porte, com tamanha repercussão, algumas delas extremamente negativas e que agridem a Constituição. Houve também manifestações de dentro do governo: o Ministério da Saúde, em nota técnica, mostrou todas as deficiências do texto e se colocou claramente contrário à sua aprovação; a Secretaria-Geral da Presidência da República se posicionou no mesmo sentido. E organizações como a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e a Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme) se colocaram veementemente contra a aprovação desse projeto.

Percebe-se uma tendência na sociedade de defesa da internação compulsória, especialmente para os usuários de crack. Como avalia isso?

Gadelha: Uma coisa é clara: a internação compulsória nunca pode ser a primeira linha de atuação no cuidado de usuários de drogas. Porque tem questões sérias em relação ao campo dos direitos humanos, porque se mostra ineficiente, porque fere toda a tradição do campo da saúde mental brasileira. Há na psiquiatria situações em que, existindo risco de vida para o usuário de drogas ou, no caso de transtornos mentais, de surto psicótico que possa gerar risco à integridade da pessoa ou de outros, é totalmente lícito e necessário se internar compulsoriamente. Mas isso só deve acontecer a partir de avaliações muito cuidadosas do campo da saúde, para proteger uma pessoa na internação voluntária e a sociedade. A internação compulsória nunca pode ser vista como eixo, prioridade, aquilo que vai dar o tom do cuidado. Ou será um desastre.

Como o senhor vê as operações contra o crack no entorno da Fiocruz, com forte abordagem policial e sem a participação da saúde?

Gadelha: As cenas de crack são terríveis. E, muitas vezes, essas ações ganham apoio porque parecem fazer uma espécie de higienização — usando um termo bem duro — do território. O problema aparentemente desaparece, mas sabemos que há dispersão em um local e reagrupamento em outro, porque, com todo o esforço que vem sendo feito, os dependentes do crack não têm ainda uma atenção continuada até a reinserção social. Hoje não temos clareza de quais são os melhores protocolos para se enfrentar o crack. É uma questão em aberto. Se a política for centrada nesse tipo de ação policial, está fadada ao fracasso. O debate está aberto e deve ser aprofundado com muito cuidado, para não virar uma pirotecnia.

Qual deve ser o papel da Fiocruz na política de drogas?

Gadelha: A Fiocruz definiu, no Conselho Deliberativo, a configuração de um programa institucional sobre drogas, que está sendo estruturado. A Fiocruz já tem vários projetos e atuações nesse campo. Por exemplo, concluiu recentemente a Pesquisa Nacional sobre Crack, realizada pelo pesquisador Francisco Inácio Bastos [LIS/Icict/Fiocruz]. Pelo nosso lugar de interface entre saúde, ciência e tecnologia, temos de oferecer de maneira organizada a reunião de competências, estudos e evidências, para ajudar na conformação de políticas. Nossa missão é a saúde e o problema das drogas é hoje central do ponto de vista da saúde pública — não apenas as drogas ilícitas, mas também a dependência do álcool e do tabaco.

O Documento da Comissão Brasileira sobre Drogas e Democracia fala da necessidade de não tratar o tema das drogas como um tabu. Qual é o papel da comunicação nesse sentido?

Gadelha: A comunicação tem papel fundamental, porque estamos tratando de percepções sociais, que precisam ser construídas a partir de boas informações, de abertura para o diálogo franco, utilizando as evidências científicas... É preciso superar o tabu existente. Enquanto houver tabu, não haverá a possibilidade de se enfrentar esse problema, pois vamos lidar com os imaginários, os fantasmas, a desinformação. Se você diz que o usuário de droga é criminoso, a sociedade acaba reagindo pelo lado da exclusão, da paranoia. Se não houver a consciência geral da sociedade, não haverá resultados significativos. Por isso, temos que discutir com todos, não apenas com os usuários.

Com ameaças de retrocesso em vista, é possível montar o quebra-cabeça e chegar a uma política de drogas avançada no Brasil?

Gadelha: Apesar das ameaças de retrocesso imediatas, tenho uma visão otimista, porque acredito no processo de mobilização social, na força de evidências... Você pode viver muito tempo em situações de obscuridade, com políticas incorretas, de exclusão, mas acredito na possibilidade de reverter isso, mexer com a percepção social, com a cultura, os valores, os tabus. A ambiência internacional ajuda a colocar essa questão de forma mais aberta no Brasil. Vemos experiências exitosas em vários países e a ONU se deslocando da visão repressiva para a visão da saúde, então, não dá para imaginar que o Brasil, que caminha em um processo de ampliação de cidadania, de redução da exclusão social e de modernização das estruturas democráticas, não enfrente esse problema de maneira positiva. Sem isso, estaríamos condenados a permanecer na obscuridade. Hoje, contamos com apoio de parte da estrutura policial, do Judiciário e de comunidades religiosas (católicas, evangélicas e outras). Não é como se houvesse, de um lado, um setor libertário, minoritário e ideológico fazendo um discurso político e, de outro lado, setores considerados conservadores contrários a esse processo. É um momento muito mais diversificado, e é aí que reside a capacidade de sucesso.

(Matéria originalmente publicada na edição de junho da revista Radis).

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