Início do conteúdo

07/08/2006

Etnicidade na América Latina: um debate sobre raça, saúde e direitos reprodutivos

Ricardo Valverde















Etnicidade na América Latina: um debate sobre raça, saúde e direitos reprodutivos

Organizadores: Simone

Monteiro e Livio Sansone

Editora Fiocruz

344p. R$ 38,00 

É em boa hora que a Editora Fiocruz publica Etnicidade na América Latina: um debate sobre raça, saúde e direitos reprodutivos. O livro vem preencher uma conhecida lacuna no debate social brasileiro, que é aquele que diz respeito às diferenças entre gênero, raça, etnia ou orientação sexual - que por anos estiveram relegados a segundo plano, tendo em vista o espaço que a luta política pela redemocratização ocupava durante o sombrio período ditatorial e também nos anos subseqüentes ao fim do arbítrio. Organizada pela psicóloga e doutora em saúde pública Simone Monteiro e pelo antropólogo Livio Sansone, a obra é dividida em quatro partes (Perspectivas histórica e contemporânea, Etnicidade e saúde, Saúde reprodutiva e população indígena e Saúde reprodutiva e população negra), que se subdividem em capítulos.


O livro investe na multidisciplinaridade: são 20 capítulos escritos por profissionais das mais diversas áreas, da medicina à economia, da biologia à sociologia, passando pela história, a pedagogia, a filosofia, a psicologia e a antropologia. Há ainda a contribuição de líderes comunitários e integrantes de movimentos sociais. A participação de pesquisadores estrangeiros é forte entre os autores, que estiveram reunidos em um seminário sobre o tema, no Rio de Janeiro, em 2001. Etnicidade na Améria Latina é fruto desse seminário, organizado pelo Instituto Oswaldo Cruz (IOC).


O enfoque principal do livro é a questão da desigualdade, analisada sob múltiplos pontos de vista e vivências, para o que ajuda bastante a diversificada formação acadêmica dos colaboradores. Para os organizadores, era necessário fazer uma reflexão sobre as desigualdades sociais e seus desdobramentos na área da saúde, um tema ainda bastante raro de ser encontrado no catálogo das editoras brasileiras. A opção por um time de colaboradores de formação ampla e heterogênea, de acordo com eles, serviu para demonstrar não apenas as dificuldades em superar problemas de desigualdade que são seculares nos países latino-americanos como também avaliar a riqueza de propostas existentes, visando a elaboração de políticas públicas.


Em um dos capítulos mais estimulantes do livro, o sociólogo Marcos Chor Maio, da Casa de Oswaldo Cruz (COC), aborda as relações entre raça, medicina e saúde no Brasil Imperial sobre a ocorrência de um pensamento teria desembocado em uma política oficial de embranquecimento da população brasileira. Maio discute se os médicos de então, subordinados à lógica das elites, teriam privilegiado o combate à febre amarela, que acometia especialmente os imigrantes europeus, ao da tuberculose, que grassava entre os pobres. O autor cita um trecho de um discurso de Rui Barbosa, no Senado, em maio de 1917, em que o senador baiano, eterno candidato à Presidência da República, afirmava que "(...) Conservadora do elemento africano, exterminadora do elemento europeu, a praga amarela, negreira e xenófoba, atacava a existência a existência da nação na sua medula, na seiva regeneratriz do bom sangue africano, com que a corrente imigratória nos vem depurar as veias da mestiçagem primitiva e nos dava, aos olhos do mundo civilizado, os ares de um matadouro da raça branca". A fragilidade da raça branca seria o mote que a ação purificadora da República precisava para entrar em ação. Sanear, limpar, embranquecer eram verbos que se conjugavam juntos na época.


Em outro capítulo, o antropólogo Peter Fry, da UFRJ, discorre sobre "as aparências que enganam" comentando o conceito de raça e lembrando que esta é uma construção social, não pertencente ao reino da natureza. Fry analisa também o movimento que existe no Brasil, semelhante ao verificado nos Estados Unidos, que prega a adoção de uma taxonomia racial bipolar. Isso significa, na prática, considerar os mulatos, pardos e pretos - categorias historicamente reconhecidas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) - como membros da população negra.


O biólogo Carlos E. A. Coimbra Jr, da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp), e a médica Luiza Garnelo, do Centro de Pesquisas Leônidas e Maria Deane (CPqLMD) tratam das questões de saúde reprodutiva da mulher indígena. Para ambos, a literatura brasileira sobre o tema, que cresceu rapidamente nos últimos 20 anos, é forte no tocante às moradoras dos centros urbanos - incluindo as mulheres negras - mas ainda é escassa no que diz respeito à análise da população feminina indígena. Os autores afirmam que os estudos antropológicos não costumam abordar aspectos específicos da saúde, enquanto que os trabalhos de corte epidemiológico em geral se baseiam no estudo de doenças sexualmente transmissíveis. Em relação à superação das desigualdades de classe, etnia/raça e gênero, os pesquisadores dizem que a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, organizada pela ONU em 1994, no Cairo, é sem dúvida um marco. No entanto, a idéia de "direitos reprodutivos" explicitada pela Conferência encontra pouco abrigo nas sociedades indígenas, que têm suas existências centradas no primado dos "direitos coletivos" sobre os "direitos do indivíduo". Fica claro então a dicotomia entre o que se discute na academia e o cotidiano dos grupos estudados.


Em um capítulo do livro dedicado a saúde reprodutiva das mulheres negras no Brasil, o médico Francisco Inácio Bastos, do Centro de Informação Científica e Tecnológica (Cict), comenta a participação de outro pesquisador sobre uma maior ocorrência de esterilizações entre mulheres pardas e/ou negras em relação às brancas. Bastos aponta as dificuldades que as diferentes abordagens sobre tema já exibiram, pois em sua opinião o assunto tende a ser tratado, em geral, de maneira bastante emocional. O autor se debruça sobre uma preocupante questão levantada por acadêmicos: a de que estaria ocorrendo um processo de esterilização que proporcionaria um novo recorte populacional do Brasil, de maneira desfavorável a determinados grupos étnicos/raciais.

Voltar ao topo Voltar