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25/02/2013

Buss: “Saúde como negócio versus saúde como direito será uma das grandes contradições a serem resolvidas na definição dos novos Objetivos do Milênio”

Danielle Monteiro*


Durante a Rio +20 - Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável realizada em junho do ano passado no Rio de Janeiro - e a reunião da Plenária de Alto Nível da Assembleia Geral sobre os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) - realizada em setembro de 2010 - os Estados Membros formularam mandatos claros e separados sobre a forma como deveria ser elaborado o processo de elaboração da agenda das Nações Unidas para o desenvolvimento pós-2015. Durante a Rio+20, os Estados Membros acordaram em estabelecer um grupo de trabalho para a elaboração de um documento com os objetivos de desenvolvimento sustentável, o qual será apresentado na Assembleia Geral das Nações Unidas em encontro que será realizado em setembro desse ano.


Este documento vai tratar das temáticas: desigualdades, população, saúde, educação, crescimento econômico e emprego, conflito e fragilidade, governança, estabilidade ambiental, seguridade alimentar e nutrição. A Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) coordenam o processo temático relativo à saúde, liderados pelos Estados-Membros Botswana e Suécia. Diante disso, a OMS recentemente elaborou um documento que tem duas finalidades: estimular os debates entre os Estados-Membros sobre o modo como os futuros Objetivos do Milênio, no que diz respeito à saúde, devem ser formulados, e elaborar um discurso sobre o lugar que a saúde deve ocupar na agenda mundial. O documento será discutido em março desse ano, em encontro que vai acontecer em Botswana, e do qual o Brasil participará.


 O coordenador do Centro de Relações Internacionais em Saúde da Fiocruz, Paulo Buss. 

O coordenador do Centro de Relações Internacionais em Saúde da Fiocruz, Paulo Buss. 


No centro da discussão sobre qual objetivo global  conviverá com (ou substituirá) os atuais três objetivos de saúde que constam nos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio está a cobertura universal de saúde. Com o intuito de contribuir com a discussão, a Fiocruz, por meio de seu Centro de Relações Internacionais em Saúde (Cris), elaborou um documento para subsidiar a posição do Brasil em fóruns internacionais. Em entrevista à Agência Fiocruz de Notícias, o coordenador do Cris/Fiocruz, Paulo Buss, fala da importância da saúde para o desenvolvimento das nações, defende os sistemas de saúde universais, integrais, equitativos e de qualidade e revela suas propostas ao documento elaborado pela OMS.


AFN: Qual a importância da saúde para o desenvolvimento mundial?


A saúde é importante no desenvolvimento mundial e também nacional, local ou qualquer nível. Ela é importante por si mesma, por ser um direito dos seres humanos. Por outro lado, populações saudáveis são capazes de contribuir não apenas para o crescimento econômico da sociedade, mas também para o desenvolvimento integral e equitativo nas sociedades contemporâneas. Cada vez mais se conclui que um desenvolvimento centrado exclusivamente no crescimento econômico, que não tenha compromissos com a equidade e, assim, seja incapaz de gerar saúde, está sendo questionado mundialmente. O conceito saúde e desenvolvimento diz, assim como o próprio documento das Nações Unidas gerado na Rio +20, que existem três pilares do desenvolvimento sustentável: o econômico, o social e o ambiental. Isso garantiria um desenvolvimento equilibrado do ponto de vista de seus vários componentes. Ainda é necessário acrescentar a questão do desenvolvimento ser equitativo, ou seja, capaz de alcançar a todos igualmente.


O documento da OMS insiste no conceito de cobertura universal de saúde e temos questionado o que se entende por cobertura, por universal e por saúde. O tema cobertura geralmente se refere à atenção aos enfermos, que é importante, mas representa somente uma parte do sistema de saúde, cujas funções são promover a saúde, prevenir a doença e tratar os doentes. Por isso que o conceito sugerido pela Fiocruz ao Ministério foi defender sistemas de saúde universais, equitativos, integrais e de qualidade. Isso representaria nosso reconhecimento da saúde como fenômeno não apenas biológico, mas também social. Assim, para se alcançar definitivamente uma situação de população saudável, a sociedade precisa enfrentar os determinantes sociais, econômicos e ambientais da saúde. O sistema de saúde também é um determinante da saúde, mas não o único. A situação social das famílias ou de determinada pessoa, sua renda, a qualidade da habitação, o acesso à água, ao esgotamento sanitário e ao tratamento do lixo, além de um ar limpo, à maneira como a sociedade influencia nesses comportamentos, tudo isso são determinantes sociais, econômicos e ambientais da saúde. Portanto, é claro que para enfrentar os determinantes é necessário mobilizar políticas extra-setoriais, de educação, saneamento, habitação, meio ambiente, entre outras, que são extremamente importantes para definir a saúde populacional.


Por esse motivo, o nosso diálogo com o documento da OMS visa chamar a atenção para os fatores além da cobertura universal, já que ele não comenta equidade, qualidade, integralidade, políticas extra-setoriais ou determinantes sociais. Nós, brasileiros, devemos ser coerentes com a Constituição brasileira. Ela diz que a saúde é um direito de todos e um dever do Estado e se realizará mediante políticas públicas capazes de enfrentar, em última análise, os fatores externos ao setor de saúde, chamados determinantes sociais da saúde.


AFN: A Fiocruz defende que a posição brasileira deve reconhecer méritos importantes em alguns parágrafos do documento da OMS. Um desses parágrafos menciona que os programas em prol da saúde mundial estão experimentando uma transformação que influencia no modo como serão definidas as prioridades de desenvolvimento no futuro. Comente a respeito.


É verdade, há um esforço de coordenação do sistema das Nações Unidas, que tem agências voltadas para diversos setores do desenvolvimento, que precisam se articular melhor. Há novos agentes, como grandes doadores privados, que, para não fracionar a cooperação internacional, precisam se articular às políticas supranacionais e programas das Nações Unidas. Nós mesmos temos hoje cooperações que pouco dialogam entre si: por exemplo,  a cooperação brasileira em saúde e em agricultura, dois expoentes da cooperação brasileira. Se conseguíssemos, por exemplo, articular melhor a cooperação da Embrapa e da Fiocruz nas dimensões da agricultura no combate à fome e da saúde no combate à desnutrição, poderíamos realizar um trabalho em conjunto ainda melhor.


O mundo devia articular algumas questões, como saúde, agricultura, educação e água limpa, por exemplo, nos objetivos de desenvolvimento sustentável pós-2015, pois já estão parcialmente nos ODMs, mas é necessária uma abordagem mais intersetorial. A consecução de uma aliança para o desenvolvimento (objetivo 8 de ODM) foi pífio; teria sido necessária uma articulação muito mais efetiva das agências das Nações Unidas. Por outro lado, a cooperação deveria buscar não apenas projetos, mas ser efetivamente sustentável. Por isso, A Fiocruz trabalha com os conceitos e práticas da cooperação estruturante em saúde, por meio da qual  apoia instituições que estruturam sustentavelmente os sistemas de saúde universais, integrais, que são os Ministérios da Saúde, os Institutos Nacionais de Saúde, as Escolas Nacionais de Saúde, as Escolas de Técnicos e Institutos de Saúde da mulher e da criança. A Fiocruz é capaz de ajudar em todas essas áreas. Temos a maior escola brasileira de saúde pública (Ensp), uma excelente escola politécnica (EPSJV), o Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF), o Instituto Nacional de Pesquisa Clínica Evandro Chagas (IPEC), o INCQS e outros, todos importantes na cooperação estruturante do Brasil na África, América Latina e outras regiões.


AFN: Qual seria a importância do documento englobar a presença dos determinantes sociais, econômicos e ambientais da saúde e não se restringir unicamente às causas biomédicas das doenças?


Quando falamos em sistemas universais e integrais, incluímos a promoção da saúde, que traz em si a ideia de reconhecimento dos determinantes sociais e da mobilização de políticas inter-setoriais e do desenvolvimento integrado e sustentável para enfrentar esses determinantes, parte fundamental para termos uma resposta completa da sociedade em relação ao desenvolvimento.


A Fiocruz ainda chama a atenção para a necessidade de o documento ter uma visão de atenção coletiva em saúde pública ao invés de focar na atenção individual e curativa. Qual a importância da ampliação dessa visão para a questão da geração de patentes e ampliação a medicamentos?


Quando construímos sistemas universais de saúde, incluímos o acesso universal e equitativo a produtos de qualidade, sejam insumos diagnósticos, vacinas, medicamentos, equipamentos e todas essas coisas necessárias para o sistema funcionar bem. A questão dos insumos para a saúde é parte desse conceito da integralidade. Existe aí uma relativa contradição entre as patentes como protetoras de medicamentos de altíssimo custo e as necessidades de saúde da população. Um exemplo é o da Aids. Cabe ao sistema de saúde interromper a cadeia de contaminação e, para isso, deve-se reduzir de forma expressiva a circulação do vírus, atenuando sua ação nos seres humanos. Para outras patologias também. Por exemplo, teríamos que ter diagnóstico para tuberculose acessível a todos e em todos os sistemas de saúde para um diagnóstico precoce, além de tratamento eficaz e disponível. A ideia dos sistemas universais não se refere exclusivamente a cobertura aos indivíduos doentes, ela é um sistema universal que inclui tanto o nível individual como o populacional, a atenção aos doentes e também a prevenção e promoção.


AFN: Que mudanças foram feitas, por parte das nações, no sentido de alcançar os Objetivos do Milênio vinculados à saúde? E o que ainda falta ser feito?  Quais suas expectativas para a definição dos próximos objetivos?


Muitos dos países que tinham os indicadores mais distantes da meta esperada foram brilhantes no desenvolvimento e no alcance de suas metas; outros, nem tanto. Uma lição aprendida é a da importância de definir objetivos e medidores desses objetivos. Nisso os ODMs podem ajudar os ODs. O segundo ponto é que é melhor ter um objetivo mais abrangente e que seja capaz de estruturar sistemas de saúde e responder às necessidades do país. Produziríamos um enorme avanço se mudássemos o conceito de “cobertura universal” para “sistemas universais, integrais, equitativos e de qualidade. Cobertura universal de saúde como negócio versus saúde como direito serão algumas das grandes contradições que terão de ser resolvidas politicamente. O Brasil defenderá sistemas universais, saúde como direito, e não cobertura universal e seguros de saúde, pois é o nosso conceito constitucional.


Precisamos ver também quais são os outros objetivos do desenvolvimento sustentável pra ver o quanto essa extra-setorialidade vai influenciar o campo da saúde. Também é importante saber como as outras áreas vão se comportar e definirão esses objetivos para vermos como a saúde será levada em conta, qual será a coerência das políticas extra-setoriais com a saúde. É uma construção que ainda não temos.



*Colaboração: Thiago Oliveira.



Publicado em 25/2/2013.

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