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04/01/2013

A saúde é um bem social, não técnico, e por isso é político

Informe Ensp


Segundo a coordenadora-geral da Asociación Latinoamericana de Medicina Social (Alames), Nila Heredia, o panorama da saúde na Bolívia é bastante inequitativo e excludente, já que 70% da população não tem cobertura sanitária pública. Outro problema, disse ela, é a formação muito técnica dos profissionais de saúde. “A saúde é um bem social, não técnico, e por isso é político”, defendeu a ex-ministra da Saúde boliviana, que ocupou o cargo nos períodos de 2006-2007 e 2010-2011. Nila Heredia considera a Alames um espaço importante de elaboração acadêmica e científica que permite intercâmbios e interação. Ela concedeu a entrevista ao Informe Ensp quando participou do Centro de Estudos da Escola com o tema Direitos à saúde na América Latina: barreiras e oportunidades, no dia 13 de dezembro.



Quais são os principais problemas enfrentados pela Bolívia em saúde pública?



Nila Heredia: A saúde na Bolívia é bastante inequitativa e excludente. Apesar de todo o trabalho realizado, não foi alcançado na sua totalidade o sistema único de saúde. No momento atual, todos os menores de 5 anos e maiores de 60 anos têm cobertura de atendimento gratuito, mas a população entre 5 e 60 anos precisa pagar pelos serviços de saúde. Apenas 30% da população é coberta pelo seguro de saúde público. Então, 70% estão sem cobertura sanitária. É uma grande inequidade e, ao mesmo tempo, temos muitas dificuldades. Na Bolívia, baixamos as taxas de mortalidade infantil, mas elas ainda são muito altas. Passamos de 54% para 45% em seis anos, e devemos baixar mais 10%. Isso mostra que ainda existem desigualdades. As estatísticas escondem detalhes: embora em muitas áreas a taxa seja bem menor, em áreas próximas das minas de Potosi, a mortalidade infantil atinge picos de 90%.



No entanto, houve melhorias significativas na região impulsionadas pela Aliança Bolivariana (Alba) e a União das Nações Sul-Americanas (Unasul) para gerar espaços e outras relações além das impostas pelos Estados Unidos.



Outro problema são os recursos humanos, que faltam não apenas em número suficiente, mas em atitude e qualidade. No âmbito clínico, os recursos humanos estão bem formados, mas, no âmbito de atendimento primário à população nas comunidades, não estão. As universidades estão formando profissionais muito clínicos, especialistas. Isso nos gera problemas, dificuldades de atender à população que não tem acesso aos serviços. Também temos os problemas culturais, formas diferentes de controle da saúde. Não são apenas problemas em relação ao idioma, mas em questão ao tratamento. Dessa forma, a prática clínica fica muito distante porque está concentrada nas cidades e não está disponível nas localidades mais afastadas. Por isso, nessa lógica, elaboramos uma política de saúde comunitária intercultural, contando com 200 médicos especialistas em saúde comunitária e formando pessoal da rede de saúde sobre o tema interculturalidade em saúde por meio de um curso virtual.



Já está clara a importância da atenção primária à saúde. No entanto, é necessário passar uma imagem de construção da saúde para a área hospitalar, para que tais profissionais se apoderem da ideia de saúde além da característica técnica. Mas ainda falta muito para conseguirmos essa mudança. A saúde é um bem social, não técnico, e por isso é político.



Como o ensino e as instituições públicas se situam nesse movimento de melhorias da saúde na Bolívia?



Nila Heredia:
As universidades são muito tradicionais e não querem entrar nessa discussão. Talvez tenham dificuldades para isso. O discurso pode ser bonito, mas nem sempre é possível. Assim, organizamos a residência médica pelo viés do Ministério da Saúde. Isso foi difícil: levou de dois a três anos, porque os conselhos médicos só querem reconhecer as residências clínicas. Mas nós queremos especializações socioclínicas que contemplem a interculturalidade. Então, permanentemente, há questionamentos. Estamos tentando ajudar os médicos a entender que a saúde precisa de outros conhecimentos, além do tradicional acadêmico. Obviamente, ninguém é contra a tecnologia, mas devemos compreender e aceitar que há outro conhecimento. Não queremos discutir questões técnicas médicas, mas o direito à saúde pela população. Os hospitais precisam deixar de serem templos da saúde. Os serviços de saúde têm de chegar até a população, que também precisa reconhecer que tem esse direito. Há uma tensão sobre o setor da saúde por ser um tema estruturante. Mas essas barreiras precisam ser rompidas. 



O fato de a saúde ser estruturante levanta uma série de desafios.



Nila Heredia:
Um dos maiores desafios atuais para a Bolívia é a integração. Mas ainda há muito a ser feito, especialmente na saúde. A integração tem sido definida como uma prioridade e uma lógica transversal à política de saúde para a família, para a comunidade, além da interculturalidade. Temos formas diferentes de compreender o seu desenvolvimento e, embora existam pontos de encontro, as técnicas devem incorporar a concepção multicultural. As equipes médicas precisam entender as várias experiências, visões, pensamentos e medos. Quebrar essa cultura é muito difícil em teoria e ainda mais na prática.



Qual é a importância da Alames nesse movimento de integração da América do Sul e do compromisso com o pensamento crítico da saúde?



Nila Heredia:
É muito importante. A Alames é um espaço de elaboração acadêmica e científica que nos permite intercâmbios e interação. Ao mesmo tempo, assumimos criticamente que ainda não conseguimos alcançar o que desejamos. Nosso discurso não é levado em conta em relação às mudanças do desenvolvimento técnico e na aplicação da lógica individualista neoliberal. Então, os médicos não são formados por meio de um discurso mais social, e sim cada vez mais técnico. Os estudantes não têm muito culpa. A questão é como articular com as universidades, o que para mim só ocorre por meio dos movimentos sociais. Essa é a única maneira.



Hoje, a senhora ocupa o cargo de coordenadora-geral da Alames e já foi ministra da Saúde em seu país. Como foi essa trajetória?



Nila Heredia:
Terminei os estudos de Medicina na Universidad Mayor de San Andrés, onde recebi o diploma de especialista em Saúde Comunitária. Quando estudei, havia quatro mulheres na Medicina. Hoje, mais da metade das classes é composta de mulheres. Fui ministra da Saúde em dois períodos: 2006-2007 e 2010-2011.



Publicado em 4/01/2013.

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