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25/05/2012

Coordenadora do projeto da fábrica de medicamentos em Moçambique comenta a iniciativa

Danielle Monteiro


Em breve, uma das iniciativas da cooperação bilateral entre Brasil e Moçambique deverá dar um grande salto em sua implementação. Está prevista a inauguração da Sociedade Moçambicana de Medicamentos, a fábrica de antirretrovirais em Moçambique. A nova fábrica, primeira empresa de capital 100% público do segmento no continente africano, promete facilitar o acesso da população moçambicana ao tratamento da Aids. O país africano é um dos dez mais afetados pelo vírus do HIV no mundo, tendo 1,7 milhão de infectados em uma população de 21,4 milhões de pessoas. A unidade de embalagem e a unidade de Controle de Qualidade estarão prontas no início de julho e a de produção dos lotes piloto no final do mesmo mês.



A iniciativa, que teve participação significativa do Instituto de Tecnologia em Fármacos (Farmanguinhos/Fiocruz), faz parte da cooperação em saúde com os países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), determinado no Plano Estratégico de Cooperação em Saúde (Pecs), assinado pelos ministros de Saúde da CPLP em 2009, em Lisboa. O projeto também contou com a participação dos chefes de Estado de ambos os países, os ministérios da Saúde dos dois países, o Itamaraty e o Ministério dos Negócios Estrangeiros de Moçambique, a Embaixada Brasileira em Maputo, o Escritório da Fiocruz na África e o Instituto de Gestão das Participações do Estado (IGEPE).



A coordenadora do projeto, Lícia de Oliveira, falou sobre a trajetória da iniciativa desde sua criação, os benefícios que a instalação da fábrica vai trazer ao povo moçambicano e a contribuição do escritório da Fiocruz na África para a implementação do projeto. Lícia de Oliveira também é analista de gestão em saúde da Fundação, farmacêutica industrial, especialista em administração pública e doutoranda em saúde internacional. Atualmente responde pela Chefia de Gabinete de Farmanguinhos e é diretora-adjunta do Escritório da Fiocruz na África.



Como se deu a trajetória do projeto desde a criação até a implantação em Moçambique?

Licia:
A cooperação internacional entre o Brasil e Moçambique iniciou-se em 2003, por meio de iniciativa do então presidente Lula e do presidente de Moçambique na época, Joaquim Chissano. Ambos consideraram a relevância e a pertinência de uma indústria pública de medicamentos em Moçambique alinhada à política de produção farmacêutica no âmbito do Ministério da Saúde e dos estados brasileiros. A presidenta Dilma Roussef incluiu o projeto da fábrica na agenda estratégica da cooperação internacional de seu governo, garantindo os bons resultados até aqui alcançados, e o atual presidente de Moçambique, Armando Guebuza, também deu continuidade de forma entusiasmada às ações que seguem até agora.



Entre 2004 e 2007, foram elaborados vários estudos como o de viabilidade técnica e econômica que concluiu pela possibilidade de instituir a fábrica em Maputo. Em 2008, a Fiocruz foi designada pelo Ministério da Saúde a instituição responsável pela execução do desafiador projeto e Farmanguinhos, como unidade produtiva de medicamentos, foi indicada para a coordenação e execução. As ações desse projeto respondem às diretrizes políticas da diplomacia brasileira, fortalecendo as relações entre os países do hemisfério sul, também chamada de cooperação sul-sul. Esta cooperação internacional, na modalidade de ação estruturante, visa compartilhar com Moçambique ações de sucesso do Sistema Único de Saúde brasileiro, como a produção pública de medicamentos. A conclusão da iniciativa tem previsão para 2014 e pode se estender por desejo dos próximos governos.



Quantas unidades de antirretrovirais e dos outros tipos de medicamentos serão fabricadas por ano?

Licia:
A capacidade instalada na nova linha de sólidos orais para uma jornada de trabalho de 8h/dia é de 226 milhões de unidades farmacêuticas de antirretrovirais e 145 milhões de unidades farmacêuticas de multiprodutos por ano.



Parte desses medicamentos será de antirretrovirais, para tratamento da Aids. Os outros tipos de medicamentos fabricados serão destinados para o tratamento de que doenças?

Licia:
Além dos medicamentos antirretrovirais, teremos medicamentos para combate à hipertensão, ao diabetes tipo 2, antiinflamatórios e outros ainda em fase de pactuação. Além disso, a fábrica dará continuidade à produção de cloreto de sódio, de glicose e já lança o ringer c/lactato, produto novo na linha de soros.



Quando será iniciada a produção dos medicamentos?

Licia:
A produção dos três lotes piloto do primeiro medicamento (Nevirapina) deve ser iniciada em julho. Estes lotes entram em estabilidade pelo período de seis meses ao final do qual, garantida sua qualidade, poderão ser distribuídos ao povo de Moçambique. Novos medicamentos terão seu início de produção iniciados mês a mês. Além disso, também será iniciada a linha de embalagem na Sociedade Moçambicana de Medicamentos (SMM) para medicamentos produzidos em Farmanguinhos, também a serem doados para uma distribuição mais imediata em Moçambique. Isto representa a parceria entre a SMM e Farmanguinhos, este último atuando como local de fábrico nesta fase inicial quando os lotes piloto de medicamentos ainda estarão em estabilidade. A fábrica conta ainda com forte investimento na garantia da qualidade, de modo a responder às exigências das boas práticas de fabricação e prepara já toda a documentação para a solicitação de inspeção para certificação internacional. Isto é um marco inovador para a indústria pública de medicamentos no continente africano.



Qual o valor do investimento no projeto?

Licia:
O Brasil, além de doar cerca de R$ 13 milhões em equipamentos, deve cumprir um investimento total de cerca de R$ 40 milhões executados entre 2008 e 2014, data prevista para a conclusão da transferência de tecnologia dos medicamentos. O projeto foi concebido com financiamento partilhado pelos governos do Brasil e de Moçambique. O Brasil ficou responsável pela doação dos equipamentos industriais, do controle de qualidade e da estação de tratamento ambiental. Também são de responsabilidade brasileira os custos com a transferência de tecnologias dos 21 medicamentos, a elaboração da documentação da garantia da qualidade e solicitação da certificação internacional, a capacitação dos moçambicanos ao longo de quatro anos, insumos para a produção dos primeiros três lotes dos medicamentos na fábrica, estudos técnicos, projeto executivo para a obra, missões técnicas e gerenciamento do projeto. Moçambique, por sua vez, ficou responsável pela aquisição do local a ser instalada a fábrica, compra da única indústria farmacêutica que operava no país produzindo soluções parenterais de grandes volumes (soro fisiológico e glicosado), realização das obras de adequação, o que foi feito numa parceria com a Vale, contratação de todo o pessoal e, a partir de 2009, pela operação da fábrica.



Atualmente, somente metade dos soropositivos candidatos a tratamento em Moçambique tem acesso aos medicamentos. Além disso, o país é grande dependente da importação desses medicamentos. Quais serão os benefícios para Moçambique com a instalação da fábrica?

Licia:
A produção pública de medicamentos em Moçambique vai contribuir para a autosuficiência do país para os medicamentos em produção na nova fábrica e, com a produção local, o país assegura a capacidade de oferta dos itens em produção de forma a fortalecer o acesso dos moçambicanos aos medicamentos disponíveis. A fábrica de medicamentos terá padrão de qualidade internacional de boas práticas de fabricação e produção de medicamentos que integram a Lista de Medicamentos Essenciais. Haverá transferência de tecnologia de 21 medicamentos, entre eles, a Lamivudina+Zidovunina, Nevirapina, Hidroclorotiazida. A fábrica vai atuar com duas linhas de produção de sólidos orais (comprimidos, cápsulas): anirretrovirais e multiprodutos, esta última para produzir vários outros medicamentos.



O Laboratório de Controle de Qualidade da fábrica, além de realizar as análises das matérias primas, embalagens, medicamentos em processo e acabados, pode atuar como suporte à política de assistência farmacêutica de Moçambique, realizando análises de outros medicamentos utilizados no país de forma a identificar sua qualidade. Moçambique, como tantos outros países do mundo, sofre especialmente com a falsificação e pirataria de medicamentos e tem  baixa capacidade de  checar a qualidade do que é comercializado ou distribuído no país. Mais de 100 profissionais moçambicanos serão capacitados com novas competências técnicas e gerenciais para atuar no segmento industrial farmacêutico. As competências incluem o desenvolvimento de novos medicamentos genéricos, controle de qualidade dos produtos acabados e dos insumos farmacêuticos e gerenciamento de toda a cadeia logística.



Moçambique poderá se tornar um polo exportador para toda a África?

Licia:
A fábrica está instalada para uma capacidade produtiva de forma a produzir medicamentos em um turno de trabalho (oito horas) ou em até três turnos de trabalho (24 horas). Desta forma, há uma variação possível de aumento de até 200% da produção de acordo com a demanda. Inicialmente, com a produção em oito horas de trabalho, está prevista a comercialização com as áreas pública e privada de Moçambique, incluindo hospitais, distribuidores e farmácias.  Posteriormente, a fábrica poderá exportar para os países vizinhos, com foco na região da África subsaariana.



A iniciativa teve participação também do escritório da Fiocruz em Maputo, recentemente instalado. Qual foi sua contribuição no projeto?

Licia:
Com foco na iniciativa da fábrica, a representação do escritório participa do grupo técnico de acompanhamento dos projetos de cooperação internacional em Moçambique, integrado por financiadores, agências governamentais e não governamentais, na busca por um resultado mais sinérgico para o país.  Neste sentido, a parceria com o escritório na África, tem sido de fundamental importância de forma a ultrapassar as dificuldades a que um projeto desta complexidade, em execução em um país distante na geografia e na cultura, apresenta como desafios constantes e em diferentes esferas hierárquicas de ambos os países. O Escritório da Fiocruz na África tem como missão acompanhar o conjunto de ações da cooperação internacional, sendo uma instituição com atuação nos níveis político (como facilitador das mediações entre o Brasil e o país parceiro), gerencial (por meio de monitoramento dos projetos) e operacional (com apoio administrativo).


Por que Moçambique foi o país escolhido para a instalação da fábrica?

Licia:
A estabilidade política, o caminho que persegue para um desenvolvimento social e econômico e para a consolidação da democracia, os números de casos e a incindência de HIV no país, os compromissos assumidos em contrapartida, a proximidade cultural e da língua e a relação diplomática histórica entre nossos países certamente contribuíram para a decisão da política externa brasileira em estabelecer esta inovadora parceria sul-sul. A cooperação internacional brasileira de forma geral e o projeto da fábrica em particular têm despertado interesse de acadêmicos de todos os continentes que nos procuram para conhecer esta forma compartilhada em responsabilidades e autônoma nas decisões dessa parceria ainda em processo de implementação. E o compromisso e envolvimento do conjunto de atores envolvidos dá à iniciativa uma face singular de responsabilidade dos países, de desafios políticos e gerenciais permanentes e de um grande desejo de acertar.



Há previsão da implantação da iniciativa também em outros países africanos?

Licia: Houve
uma solicitação, por parte do chefe de Estado de Benim, à presidenta Dilma, neste ano. A ministra da Saúde deverá estar no Brasil nesse mês com previsão de visita à Fiocruz e a Farmanguinhos. A cooperação brasileira tem se fortalecido muito nos últimos dez anos e o Brasil tem aperfeiçoado seus mecanismos de decisão sobre as demandas que devem ser atendidas, bem como elevado sua qualidade de resposta aos parceiros. Nosso país tem sido frequentemente solicitado nesta fase de inserção como novo ator no cenário da cooperação internacional. Instalar uma fábrica de medicamentos num país de África representa, além da entrada no setor farmacêutico, um excepcional salto de conhecimento tecnológico e de desenvolvimento de competências. No entanto, é um investimento de alto valor financeiro na instalação e que continua nos primeiros anos da operação. 


Portanto, depende de muita determinação política, disponibilidade de pessoas dedicadas exclusivamente à iniciativa e às capacitações, retenção do pessoal capacitado, disponibilidade financeira para fazer face aos investimentos necessários para operar a produção e para acompanhar as exigências internacionais de garantia da qualidade dos medicamentos. Além disso, depende do fortalecimento da área de regulação de medicamentos, situação necessária para que o país demonstre ao mundo a qualidade da sua produção farmacêutica. Por todas estas implicações, esta é uma ação dependente de condições prévias para sua realização e sucesso.


Publicado em 25/5/2012.

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