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02/09/2011

Temporão: 'Isags é um desenho inovador de instituição, uma dupla face de integração continental'

Edmilson Silva


Após enfrentar o desafio de ser o ministro da Saúde do Brasil, José Gomes Temporão foi conduzido a outro: nos próximos três anos, estará à frente do Instituto Sul-Americano de Governo em Saúde (Isags), instituição internacional que terá sede permanente no Brasil, no Rio de Janeiro, e funcionará como um centro que reunirá as melhores experiências de gestão em saúde, a serem compartilhadas pelos 12 países integrantes da União das Nações Sul-Americanas (Unasul). Professor da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), Temporão classifica como “doce desafio” essa empreitada de dirigir o Isags, entidade cuja originalidade é destacada por ele nesta entrevista: “vai ser uma grande contribuição não apenas para o continente sul-americano, mas que pode ser também interessante à saúde global”.


Temporão e uma equipe muito experiente começam a trabalhar, tendo em mente, entre outros parâmetros, a advertência de que “a saúde só vai ser realmente vista como um bem comum, quando cada cidadão tiver consciência do papel e da importância dos sistemas de saúde na questão de equidade, dignidade e melhoria das condições de vida”. O sanitarista destaca algumas áreas em que o Brasil poderá fazer oferta da experiência acumulada pelo Sistema Único de Saúde (SUS), como a Atenção Primária, o Programa de Controle do HIV e a política de transplantes, entre outros; defende a necessidade de repolitização da saúde e fala sobre a importância dos determinantes sociais da saúde. “No fundo, o que determina a saúde é a maneira como a riqueza e o poder estão distribuídos pela sociedade”, afirma.


O senhor é alguém que não corre de desafios. Foi ministro da Saúde do Brasil, que não é uma tarefa fácil, e agora estará à frente do Isags. Qual é o maior desafio?



José Gomes Temporão:
Primeiro, é um desafio distinto, diferente, porque é um tipo novo de instituição também. O Isags aparece como um desenho inovador de instituição, uma dupla face de integração Continental dentro do esforço dos países de promover a integração, e, no campo da saúde pública, de inovar, como uma entidade que vai trabalhar baseada na gestão do conhecimento, disponibilizando aos ministérios da Saúde do continente as melhores evidências no setor saúde, isso integrado ao conjunto de prioridades estabelecidas pelos ministros no contexto da Unasul (União das Nações Sul-Americanas). É evidente que ele é um desafio: conceitual, metodológico; é um desafio de como vamos organizar o trabalho do Isags para que ele dê conta dessa missão, mas eu entendo que é um doce desafio, porque é uma proposta que vai inovar em muitos sentidos. Vai ser uma grande contribuição, não apenas para o Continente Sul-Americano, mas que pode ser também interessante à saúde global.


Dentro desse desafio, o que o Brasil tem a oferecer como solução na área de saúde pública. O que já foi testado aqui e pode ser experimentado em outros países?



Temporão:
O Brasil tem a oferecer 22 anos de trabalho, de construção de um sistema de saúde diferente, novo. Eu nunca me esqueço de 2009, em Londres, ao participar de uma reunião sobre determinantes sociais da saúde, na qual estavam presentes ministros da Saúde do mundo todo. Michael Marmot – um dos maiores epidemiologistas e então coordenador de Determinantes Sociais da Saúde OMS (Organização Mundial da Saúde) – coordenou a reunião e pediu para que cada ministro falasse um pouco sobre o que estava acontecendo em seus respectivos países. No final, fez uma síntese e disse o seguinte: bom, depois de tudo o que ouvi aqui, quero dizer para vocês uma coisa: aprendam português e olhem para o Brasil, porque é lá, realmente, o país em que estão acontecendo coisas novas no campo da saúde pública.


Desde o grande esforço brasileiro na descentralização dos serviços de saúde, até a inovação de estruturar espaço de pactuação interfederativa, como a Tripartite e a Bipartite; o sucesso da política de Atenção Primária, através do Programa de Saúde da Família; do Brasil Sorridente; da nova política de assistência farmacêutica; a partir do Farmácia Popular; políticas consagradas como a voltada para o combate à Aids; com a produção de genéricos e desenvolvimento de tecnologia brasileira; o nosso programa de transplantes, que é o maior sistema público de transplantes do mundo; a nossa estrutura de vacinação; a rede de bancos de leite humano, em que o País está exportando tecnologia para o mundo todo, área aliás em que a própria Fiocruz avançou e inovou muito.


O Brasil tem um acúmulo de experiências práticas, conceituais, metodológicas, construiu um conhecimento no campo da saúde pública, e a ideia é a de que ele possa, sem nenhuma pretensão de que nós somos os melhores, não é isso, colocar à disposição dos países do continente. Mas também chamar a atenção para o fato de que o Isags pretende ser o espaço de acúmulo de sucessos de todos os países, dispor esse conhecimento para os outros países que, por algum motivo, não avançaram em determinada área. Então, serão todos os países colocando suas experiências tecnológicas e gerenciais da saúde a estruturar um banco de capacidades, que estará à disposição dos demais países.


Essa oficina de trabalho que se segue à inauguração do instituto é o começo desse compartilhamento?



Temporão:
Todo o processo de construção do Isags foi, desde o início, baseado em uma grande discussão coletiva envolvendo todos os ministros da Saúde dos 12 países-membro da União das Nações Sul-Americanas (Unasul).  Na realidade, a oferta do Brasil como sede permanente do Isags foi uma maneira de ajudar a viabilizar essa ideia. Tanto é assim que o governo brasileiro adiantou recursos para que no início de operação do Isags, a instituição possa estruturar as suas bases. Além disso, desde o início, reunimos os melhores especialistas para criar uma matriz, cujas respostas iniciais servirão de apoio para que o Isags possa colocar em prática o seu plano de trabalho, atendendo às prioridades estabelecidas pelo Conselho de Saúde Sul-Americano da Unasul. Apesar de o Isags ter sede permanente no Rio, será uma entidade, desde o começo, sul-americana, compartilhando com todos os países desafios, propostas, dificuldades, dentro de uma perspectiva democrática de construção de consenso, construída de maneira conjunta.


O senhor defendeu, recentemente, a necessidade da repolitização da saúde?



Temporão:
Com certeza. É preciso romper com uma visão totalmente equivocada de achar que a saúde é um problema dos economistas ou dos gestores. A saúde é um problema dos economistas, porque os recursos são escassos e temos que conseguir um grau maior de eficiência. E é dos gestores, porque temos que introduzir inovações de gestão para que haja mais eficiência e controle. Mas eu digo também que a saúde é, principalmente, um problema dos cidadãos e da sociedade. De um lado, tendo isso como perspectiva e como base fundamental a visão, cada vez mais importante, de que a determinação social da saúde, os determinantes estruturais que estabelecem padrões de adoecimento, de morte, e os macrofatores que conduzem o sistema de saúde; e do outro lado, as questões culturais e educacionais, não se pode falar hoje em saúde pública sem discutir o papel da grande mídia como fator de deseducação da sociedade. E/ou de educação, para o bem e para o mal, porque ela ajuda tanto a informar, a educar, como também, em muitos momentos, ajuda a deseducar.


A saúde só vai ser realmente vista como um bem comum, quando cada cidadão tiver consciência do papel e da importância dos sistemas de saúde na questão da equidade, da dignidade, da melhoria das condições de vida. Entretanto, não devemos abrir mão de uma visão instrumental da saúde: sistemas mais eficientes, com custos mais compatíveis, transparentes, controlados pela sociedade, mas sem perder de vista as questões mais amplas, porque, no fundo, o que determina a saúde é a maneira como a riqueza e o poder estão distribuídos pela sociedade.


Então, o Isags vai atuar também a favor da equidade?


Temporão: Todos os aspectos que giram em torno da determinação social da questão da saúde estarão na agenda estratégica do Isags.


Publicado em 2/9/2011.

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