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21/11/2008

Tese investiga a emergência do farmacêutico na Corte Imperial

Fernanda Marques


Curar é uma ciência ou uma arte? Onde termina o trabalho do médico e começa o do farmacêutico? Como regular a fabricação e o comércio de remédios? Se até hoje essas questões geram polêmicas, imagine então no século 19, quando ocorreu o processo de institucionalização da farmácia no Brasil. Refletir sobre esse processo foi o objetivo da tese de doutorado da historiadora Verônica Pimenta Velloso. O trabalho, intitulado Farmácia na Corte Imperial (1851-1887): práticas e saberes, teve como foco principal a criação de duas associações científico-profissionais: a Sociedade Farmacêutica Brasileira, em 1851, e o Instituto Farmacêutico do Rio de Janeiro, em 1858. Sob orientação da professora Maria Rachel Fróes da Fonseca, a tese foi defendida no ano passado na Casa de Oswaldo Cruz (COC) da Fiocruz. Em 2008, Verônica participou do 13º Encontro de História Anpuh-Rio e ajudou a organizar a exposição Medicina e saúde no Brasil e Portugal: 200 anos, que esteve em cartaz no Museu Histórico Nacional. Em entrevista à Agência Fiocruz de Notícias (AFN), a pesquisadora apresenta as principais reflexões da sua tese:


 Verônica: a farmácia era considerada uma arte mecânica, inferior às artes liberais, que eram as atividades que trabalhavam mais com o intelecto

Verônica: a farmácia era considerada uma arte mecânica, inferior às artes liberais, que eram as atividades que trabalhavam mais com o intelecto


AFN: O objetivo da sua tese era refletir sobre o processo de institucionalização da farmácia no Brasil, a partir da criação de duas associações científico-profissionais no Rio de Janeiro em meados do século 19: a Sociedade Farmacêutica Brasileira e o Instituto Farmacêutico do Rio de Janeiro. A senhora pode traçar um breve panorama de como era a farmácia no Brasil antes disso? A prática da farmácia, antes, era vista mais como magia ou arte do que como ciência?

Verônica Pimenta Velloso: Desde 1835, alguns farmacêuticos já integravam a seção de farmácia da Academia Imperial de Medicina, no Rio de Janeiro. Eles já tinham dado os primeiros passos na direção de uma organização coletiva, onde lutavam pelos seus interesses. Para estes farmacêuticos que formariam as primeiras associações, a farmácia deveria alcançar o estatuto de uma ciência, isto é, dentro de uma concepção racional de ciência. Para eles, a química, por permitir a análise dos medicamentos, conferia o sentido científico à farmácia. Mas a química nasceu da alquimia, que tinha um sentido esotérico, transcendental, mágico – algo que, de certa forma, era rejeitado pelos farmacêuticos, pelo menos em termos de discurso. Por outro lado, entre a clientela para a qual eles manipulavam os medicamentos, a crença no sobrenatural permanecia. Os remédios de segredo, que curavam quase todos os males e cujas fórmulas eram ocultadas, contribuíam para a aura de mistério em torno da cura. Além disso, é preciso esclarecer o sentido de arte naquela época. A arte de manipular ou formular medicamentos estava relacionada ao ofício do farmacêutico, que se caracterizava como um trabalho manual. Por isso, a farmácia era considerada uma arte mecânica, inferior às artes liberais, que eram as atividades que trabalhavam mais com o intelecto. 


AFN: Na tese, a senhora fala bastante nas relações entre arte, ciência e política. Como os três ingredientes se combinaram nesse processo de institucionalização da farmácia?

Verônica:
A trajetória de alguns farmacêuticos expressam esta articulação entre arte, ciência e política. O boticário Ezequiel Corrêa dos Santos (1801-1864) se destaca como um dos principais fundadores e presidente da primeira associação criada na capital do Império em 1851: a Sociedade Farmacêutica Brasileira. Antes disso, ele se tornou um personagem público a partir de sua participação na movimentação política depois da Independência e nos anos que se seguiram. Entre 1829 e 1831, ele foi proprietário de um jornal liberal que se posicionou contra o absolutismo de dom Pedro I e as assinaturas deste jornal eram feitas em sua botica. Ou seja: naquela época, as boticas, além de prepararem e comercializarem medicamentos, firmavam-se como espaços de reuniões políticas. A partir do momento em que se formavam as associações próprias de farmacêuticos, começou a haver um diálogo maior ou, pelo menos, uma tentativa de diálogo com o governo imperial, de quem solicitavam apoio e proteção para regulamentarem suas atividades. A década de 1850, marcada por uma estabilidade maior no Império, trouxe, então, novas formas de participação política para aqueles atores ligados as artes de curar. É importante lembrar que, a partir do verão de 1849-1850, a febre amarela passou a ser endêmica em algumas cidades do Império, somando-se a outras doenças epidêmicas como a cólera e a varíola, além de doenças como síflis, febre tifóide, desinterias etc. Esse quadro levou a uma demanda maior por aqueles que lidavam com as artes de curar, promovendo disputas entre farmacêuticos, médicos, sangradores, barbeiros, homeopatas, fazedores de remédios, curandeiros etc.


AFN: A senhora menciona as tensões entre os farmacêuticos e os médicos. Qual o papel atribuído a cada profissão no caso de epidemias, por exemplo a febre amarela?

Verônica:
Os tratamentos propostos pelos órgãos sanitários do governo imperial deixavam implícitas as distinções que se pretendia fazer entre um ofício e outro, sendo que à intervenção dos médicos era sempre dada maior importância. Os médicos deveriam prestar assistência aos doentes ao passo que os farmacêuticos deveriam formular os medicamentos de acordo com as receitas médicas. É claro que, no dia a dia, não era bem assim; muitas vezes, as boticas e os boticários prestavam assistência aos doentes, e os médicos, por sua vez, também formulavam medicamentos. A leitura dos relatórios da Junta Central de Higiene Pública, nos períodos de epidemia de febre amarela, nos dão várias informações a esse respeito. Os membros da Junta eram, basicamente, todos médicos consultados nas épocas de epidemias. A maioria das medidas adotadas no combate às epidemias não contemplava os serviços dos farmacêuticos, que ficavam restritos ao fornecimento de medicamentos, sendo que estes, muitas vezes, eram simplificados, adotando-se os de uso popular para atender a um número maior de pessoas. Nesse cenário, os farmacêuticos reivindicavam uma maior participação na tomada das medidas higiênicas, que iam desde o saneamento básico, a secagem dos pântanos e a limpeza das ruas até a higiene doméstica e pessoal. Por outro lado, os episódios de epidemias incentivavam a reunião de farmacêuticos e médicos em associações, como uma forma de se protegerem do mercado informal que crescia nessas épocas. Não foi à toa que a primeira associação farmacêutica surgiu após a epidemia de febre amarela do verão de 1849-1850. Havia, sim, tensões entre farmacêuticos e médicos, mas eles também faziam alianças. E estas, muitas vezes, beneficiavam alguns farmacêuticos. Um exemplo disso é o do boticário Ezequiel Corrêa dos Santos,  que, na epidemia de 1849, teve seu estabelecimento indicado pelo governo para o fornecimento gratuito de medicamentos à população pobre. Assim, ele se tornou farmacêutico da Casa Imperial.


AFN: O processo de institucionalização da farmácia também marca uma mudança na nomenclatura, onde o "boticário" vai cedendo lugar ao "farmacêutico"?

Verônica:
Oficialmente, a designação de farmacêutico surge no Brasil com a criação do curso farmacêutico nas faculdades de medicina do Império, no Rio de Janeiro e na Bahia, em 1832. Quem se formava por esse curso deveria, então, ser denominado de farmacêutico, em contraste com o boticário, que seria aquele que aprendia o ofício numa botica, trabalhando como aprendiz de um mestre boticário. Porém, no cotidiano, essa distinção entre um e outro não acontecia. Nos anos 1870, os farmacêuticos reunidos no Instituto Farmacêutico do Rio de Janeiro questionaram essa falta de distinção, considerando-a um sinal de atraso em relação a outros países. A terminologia e a figura do boticário passaram a ser associadas às corporações de ofício da Idade Média e ao praticante de alquimias excêntricas, ao passo que o farmacêutico simbolizaria o moderno, o profissional que trabalhava num laboratório e utilizava a química para comprovar a eficácia de suas fórmulas. Os farmacêuticos das associações passaram, então, a chamar a atenção para essa distinção, como uma forma de denunciar o exercício ilegal da farmácia ou as práticas informais relacionadas à farmácia, que eram, de certa forma, aceitas ou até mesmo incentivadas pela legislação sanitária vigente. A Junta Central de Higiene Pública, órgão do governo responsável pela fiscalização das artes de curar, alegava que os dois únicos cursos farmacêuticos que existiam no país eram insuficientes para atender às necessidades de todo o país. Eram expedidas, então, licenças que permitiam o exercício da farmácia por leigos.


AFN: E a figura do "charlatão", como ela é caracterizada?

Verônica:
A designação de charlatão foi sofrendo modificações ao longo do período analisado. Nas décadas de 1840 e 1850, os homeopatas eram considerados verdadeiros charlatões pelos farmacêuticos pertencentes à Academia Imperial de Medicina. Isto porque os homeopatas não faziam distinção entre o farmacêutico e o médico ao darem consultas e formularem medicamentos, além de defenderem uma concepção diferente dos medicamentos, ao utilizarem as doses infinitesimais. Contudo, com o tempo, parte desses conflitos foi sendo contemporizada e alguns farmacêuticos acabaram incorporando a homeopatia, isto é, anunciavam a venda de medicamentos homeopáticos em seus estabelecimentos. A partir da década de 1860, percebe-se que a designação de charlatão se amplia para outros personagens como os livreiros, perfumistas, fazedores de remédios, vendedores de remédios secretos etc. Mas a figura e a designação de charlatão não foram típicas só do Brasil: era algo universal. Uma prova é a ópera italiana Elixir de amor, composta por Donizetti em 1832 e conhecida mundialmente, na qual a figura do charlatão é representada pelo personagem Dulcamara, que vende vinho como se fosse um elixir milagroso capaz de curar todos os males e despertar o amor.


AFN: Em linhas gerais, como era o processo de fabricação dos remédios?

Verônica:
O processo de fabricação dos remédios envolvia muitos atores. Nas prateleiras das farmácias, havia as fórmulas oficinais, já prontas para o consumo, e as magistrais, preparadas mediante a apresentação de uma receita médica. Estas últimas poderiam ser um dos motivos da aliança entre farmacêuticos e médicos, visto que elas obrigavam o cliente à consulta médica e o médico consultado, por sua vez, podia indicar uma determinada farmácia para preparar o medicamento receitado. No entanto, muitas substâncias utilizadas pelos farmacêuticos para manipularem suas fórmulas eram fornecidas pelos chamados droguistas, que também vendiam remédios já prontos, gerando outras tensões. No século 19, os farmacêuticos reclamavam da falta de um código farmacêutico brasileiro, visto como um instrumento para regulamentar suas atividades, ao padronizar as fórmulas oficinais que deveriam constar numa botica. Para eles, a elaboração do código deveria incluir farmacêuticos e médicos com conhecimentos de química, física e botânica.A partir da década de 1870, a solução adotada pelos farmacêuticos para sanarem as disputas com os droguistas  foi incorporar o ramo da drogaria, tornando-se proprietários de importantes estabelecimentos na capital do Império. Com o passar do tempo e com a industrialização crescente dos medicamentos, principalmente a partir dos anos 1940, os estabelecimentos farmacêuticos foram se convertendo em drogarias, ou seja, estabelecimentos revendedores de medicamentos já prontos, salientando o sentido comercial de suas práticas.


AFN: Como eram as relações do Brasil com Portugal no processo de institucionalização da farmácia?

Verônica:
No desenrolar da minha pesquisa aos periódicos das associações farmacêuticas do Rio de Janeiro, deparei-me com vários artigos publicados originalmente pela Sociedade Farmacêutica Lusitana, criada em Lisboa em 1835. Além disso, os periódicos brasileiros anunciavam em suas páginas o recebimento de vários números de jornais desta associação portuguesa. Achei interessante a permanência da referência portuguesa no campo da farmácia entre 1851 e 1887. Acabei indo para Lisboa, onde fiz um estágio de seis meses no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Tive, então, a oportunidade de consultar aqueles periódicos portugueses e outros afins, o que enriqueceu bastante o meu estudo. Busquei perceber os sentidos e os objetos dos intercâmbios que se fizeram entre as associações brasileiras e a lusa. A permanência das relações e interesses comerciais entre os dois países e a vinda maciça de portugueses para o Brasil no período deram o tom às propostas e às práticas dos farmacêuticos dos dois lados do Atlântico.


AFN: Quanto ao ensino da farmácia, ele era um ofício passado de pai para filho e se tornou uma cadeira na universidade?

Verônica:
O ensino farmacêutico dado pelos próprios farmacêuticos foi uma das principais reivindicações da categoria que atravessaram o século 19, tanto no Rio de Janeiro como em Lisboa. As tensões entre farmacêuticos e médicos ficaram em evidência quando aqueles começaram a lutar pelo fim da exclusividade dos médicos  no magistério e a pleitear um curso farmacêutico separado do curso médico. A ausência de uma escola de farmácia autônoma, de nível superior, afligia aqueles farmacêuticos e os fazia se sentirem inferiores aos profissionais de países como França, Espanha, Inglaterra e Alemanha, onde ja havia escolas de farmácia. Nas décadas de 1850 e 1860, eles reclamavam constantemente da falta de um ensino prático da farmácia nas escolas médicas. Neste período, a Sociedade Farmacêutica Brasileira, no Rio de Janeiro, destaca-se ao exercer sua influência na reforma do ensino médico aprovada pelo ministro do Império, o barão do Bom Retiro. A reforma previu a instalação de oficinas farmacêuticas para o ensino prático da farmácia nas faculdades de medicina do Império. E, enquanto essas oficinas não ficavam prontas, foi admitida a cessão de oficinas particulares para fins de ensino prático. A arte de formular era, muitas vezes, passada de pai para filho nas boticas, mas aqueles farmacêuticos reunidos em associações lutavam pela academização dos saberes obtidos na prática. Para eles, a formação acadêmica iria conferir o estatuto de ciência às suas atividades. Contudo, ao longo do século 19, tanto em Lisboa como no Rio, as boticas ou farmácias permaneceram como espaços da aprendizagem da arte de formular, frustando aqueles farmacêuticos nas suas intenções de serem vistos como homens de ciência e não como simples comerciantes.


AFN: Como era a questão do comércio, dos preços e da regulação dos produtos farmacêuticos?

Verônica:
Os farmacêuticos das associações brigavam para participar das decisões relacionadas às suas ocupações. Houve, inclusive, algumas situações em que eles foram consultados pelos presidentes da Junta Central de Higiene Pública, Francisco Paula Cândido e o barão do Lavradio, a respeito da tabela de medicamentos que deveriam constar nas boticas. Mas os farmacêuticos reclamavam de que algumas de suas propostas, como a produção local de medicamentos, não eram acatadas. Além de terem que competir com uma produção informal local, havia as substâncias e as especialidades farmacêuticas estrangeiras, muitas vezes com preços mais acessíveis. Ou seja: as atividades farmacêuticas envolviam também interesses relacionados a questões de política externa e comércio, além dos sistemas terapêuticos diversos, problematizando a atuação de um órgão como a Junta Central de Higiene Pública, responsável pela fiscalização do exercício da farmácia e da medicina e pela adoção de medidas higiênicas com o intuito de manter a salubridade.


AFN: No período estudado, houve casos de remédios que causaram reações adversas graves?

Verônica:
Era comum, na época, a ocorrência de envenenamentos involuntários por medicamentos. Há o relato de um caso que envolveu o presidente da Sociedade Farmacêutica Brasileira, o boticário Ezequiel Corrêa dos Santos, que manipulou um medicamento composto por santonina e calomelano, e o médico Barão de Lavradio, da Academia Imperial de Medicina, que o receitou para tratamento de verminose. O medicamento acabou causando a morte de um escravo após sua ingestão, tornando-se objeto de discussão numa sessão da Academia Imperial de Medicina. Chegou-se à conclusão de que havia estricnina misturada à santonina, o que teria causado a morte do indivíduo. O boticário, dono do estabelecimento farmacêutico, e o médico que prescreveu a receita foram considerados inocentes.


Publicado em 2111/2008.

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