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16/03/2007

Novo ministro da Saúde anuncia os planos para o setor em entrevista exclusiva

Edmilson Silva


O novo ministro da Saúde, o médico e servidor da Fiocruz José Gomes Temporão, tomou posse no cargo nesta sexta-feira (16/03), no Palácio do Planalto. Na entrevista abaixo, exclusiva para a Agência Fiocruz de Notícias (AFN), ele apresenta as suas propostas para o ministério e recorda a trajetória de militante do movimento pela reforma sanitária. Temporão comenta também os desafios que existem para o SUS e aborda a regulamentação da emenda (constitucional) nº 29, que destina verbas para o setor, entre outros temas. A transmissão de cargo de ministro ocorrerá na segunda-feira (19/03), no Ministério da Saúde.


 O novo ministro da Saúde, José Gomes Temporão (à direita), prepara-se para assinar o termo de posse ao lado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e do ex-ministro Agenor Álvares (Foto: Domingos Tadeu/PR)

O novo ministro da Saúde, José Gomes Temporão (à direita), prepara-se para assinar o termo de posse ao lado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e do ex-ministro Agenor Álvares (Foto: Domingos Tadeu/PR)


AFN – O senhor vê a empreitada como um desafio ou um prêmio?

José Gomes Temporão – Com certeza é mais um desafio, talvez o mais importante da minha carreira, mas também vejo como um prêmio. E isto com uma certa naturalidade, embora eu não tenha em nenhum momento buscado o cargo, imaginado que um dia eu o ocuparia, quando eu revejo a minha trajetória, desde a universidade, estes 30 anos de saúde pública, me deixa assim bastante confortável em relação a essa posição. É um prêmio sim, mas diria mais: não é um prêmio apenas para mim, mas sim para toda uma geração de profissionais de saúde, que vem, há décadas, lutando pela implantação da reforma sanitária brasileira.


AFN – Geração que chegou a ser chamada de Partido Sanitarista...

Temporão –
Uma geração que veio para mudar e está mudando a história da saúde pública brasileira. Claro que, com a vinda de Saraiva Felipe (PMDB-MG) para o Ministério da Saúde, embora ele integre o grupo dos sanitaristas históricos, ele veio para a pasta como político, como deputado. Agenor (Álvares da Silva), o atual ministro, que também participou desse movimento pela saúde pública (o Movimento Sanitarista), ficou um bom tempo na interinidade. O que chama a atenção na minha indicação, primeiro é o fato de eu ser da Fiocruz, o primeiro pesquisador da Fundação a ser ministro da Saúde. Até porque, quando Oswaldo Cruz ocupou o cargo correspondente, o ministério não existia. Portanto, é um senhor desafio, mas tenho consciência e clareza do tamanho da empreitada, mas, por outro lado, sinto um conforto pelo fato de representar e integrar um grupo muito grande, composto por centenas de sanitaristas e pelos demais profissionais de saúde do meu país. Estou sendo levado a este cargo pelas mãos do presidente da República, mas não me sinto assumindo o cargo sozinho. Há toda uma história e um trabalho compartilhado por essa gente que batalha pela melhoria da saúde pública.


AFN – O senhor chega ao cargo de ministro por conta do seu trabalho em saúde pública, mas também como representante do Rio de Janeiro, por conta do pedido do governador do estado, Sérgio Cabral (PMDB). Que avaliação faz disso?

Temporão –
É evidente que o Rio de Janeiro tem uma parcela importante de responsabilidade na minha indicação, porque, queiramos ou não, é um estado que, não apenas pelo seu cenário político, mas também pelo seu cenário cultural, continua formando opinião. Sendo assim, todas as boas coisas e as ruins que acontecem no Rio de Janeiro têm repercussão nacional. E existe uma grande expectativa da população do Rio pela gestão do governador Sérgio Cabral, assim como há um grande entusiasmo dele, que vem se mostrando um governador dinâmico, ligado às questões mais importantes para o povo, com destaque para a saúde e segurança públicas. Questões essas que representam desafios, tamanha a magnitude delas. É claro que, na condição de ministro, vou ter que olhar a saúde do Brasil inteiro, como um todo, mas o Rio, obviamente, vai ser um espaço privilegiado, de experimentação do que pode ser feito para melhorar, até porque é no Rio que o Ministério da Saúde tem a sua rede própria instalada, inclusive os três institutos nacionais (Instituto Nacional de Câncer, o Inca, o Instituto Nacional de Traumato-Ortopedia, o Into, e o Instituto Nacional de Cardiologia de Laranjeiras, o INCL).


 O presidente Lula discursa na posse do novo ministro, observado por Temporão, pelo ex-ministro da Saúde Agenor Alvares e pela ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff (Foto: Antonio Cruz/ABr)

O presidente Lula discursa na posse do novo ministro, observado por Temporão, pelo ex-ministro da Saúde Agenor Alvares e pela ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff (Foto: Antonio Cruz/ABr)


AFN – No Rio está a maior rede pública de saúde do Brasil...

Temporão –
Sim. E também estão no Rio algumas das maiores instituições de pesquisa, ensino e formação de recursos humanos do país. Tenho certeza de que vamos conseguir decifrar, definitivamente,  aquela esfinge em que se transformou a saúde pública do Rio de Janeiro e, assim, começar um novo capítulo na história sanitária local,junto com Sérgio Côrtes (secretário estadual de Saúde) e o governador Sérgio Cabral. Estou muito confiante que vamos fazer uma grande mudança na saúde pública do Rio de Janeiro. Mas essa mudança terá que contar, obviamente, com o apoio e a participação da UFRJ, da Uerj, da Academia Naconal de Medicina, da Fiocruz, claro, e das outras instituições que estão situadas no Rio.


AFN – Por falar em esfinge, nacionalmente, o SUS tem uma cara específica. E é o maior plano de saúde pública do mundo. Que cara o SUS terá na sua gestão?

Temporão –
Teremos múltiplos desafios para enfrentar, mas algumas marcas vou querer deixar. A marca da qualidade, a marca do respeito e do acolhimento, que é o termo que nós técnicos da área chamamos, mas, na realidade, é perceber em cada pessoa que procura o serviço de saúde, o SUS enfim, alguém que precisa de apoio, de atenção, de cuidado especial. A dimensão da humanização. Participação também, pois o controle social é vital para o SUS, e que essa participação não se dê apenas pela sociedade organizada como um todo, mas dos próprios funcionários e atores que são os que constroem no cotidiano o sistema de saúde. Outra dimensão que terá que ter é a do desenvolvimento, com o apoio da ciência e da inovação tecnológica, com a produção de insumos adequados para a área de saúde. Esta, especificamente, é uma área em que temos muito a avançar, e em que o Brasil está com um problema sério, devido ao enorme déficit setorial, que, no ano passado, ultrapassou os U$S 5 bilhões. E nessa área, também, acho que podemos deixar uma marca importante.


AFN – O presidente da Fiocruz, Paulo Buss, ao se referir à sua escolha para ministro, exaltou a sua capacidade de se manter atualizado, pelo fato de estar, simultaneamente, na academia e no setor produtivo. Há uma terceira vertente crucial nessa história que é a questão política. Além da primazia técnica, como fica a questão política?

Temporão –
Eu sou um quadro político. Essa discussão toda que está na imprensa e em que há [pelo PMDB, partido ao qual Temporão está filiado] a argumentação de que se queria indicar um político e é indicado um técnico, acho que aí havia um certo viés de que eu seria um tecnocrata.Quem conhece a minha história, sabe que não é nada disso. Participei ativamente, por exemplo, de todo o processo de luta contra a ditadura, processo em que o setor saúde desempenhou papel importante, principalmente no Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), no Movimento de Médicos, chamado Reme. Militei em partidos políticos. A dimensão do técnico que passa a vida inteira na militância, ocupando cargos técnicos, tem um forte conteúdo político, o de construir no Brasil um sistema de saúde universal, igualitário, equânime, de qualidade, o SUS, essa construção política e social, cuja dinâmica está apenas recém-iniciada.


AFN – Mas que, talvez, por isso mesmo, ainda é alvo de muitas críticas.

Temporão –
Há muitos estudos interessantes que demonstram que os que mais criticam o SUS são aqueles que não o usam ou o utilizam eventualmente. Quando se faz uma avaliação do SUS com os usuários do sistema esta é geralmente boa. "Ah, mas nós temos problemas", reclamam os críticos do SUS. Sim, mas temos também programas, políticas, processos reconhecidos inclusive internacionalmente.


 Cópia de parte do primeiro contrato de trabalho de Temporão com a Fiocruz, de 1980

Cópia de parte do primeiro contrato de trabalho de Temporão com a Fiocruz, de 1980


AFN – Do que o senhor se orgulharia de ter colaborado com a sua gestão para o SUS, para a saúde pública brasileira?

Temporão –
Que a população do Brasil tivesse orgulho do seu sistema de saúde e cada vez mais passasse a utilizar os serviços que o SUS oferece. Quando deixar o ministério perceber que a população brasileira respeita, acredita e aposta no aperfeiçoamento e na consolidação do SUS.


AFN – Dados recentes dão conta do uso crescente dos serviços do SUS pelos integrantes da classe média...

Temporão –
Mas esse uso ainda é pequeno e muito seletivo. Ingleses e canadenses têm profundo orgulho do sistema de saúde deles. E isto acontece por quê? Porque são sistemas de saúde construídos nessa perspectiva de atender, de fato, as necessidades do país, e eles percebem nesses sistemas uma construção deles e que atende profundamente às suas necessidades enquanto cidadãos. No Brasil existe uma percepção latente, mas que ainda não está claramente definida, e que é expressa por pessoas que pensam que prestar serviços à população mais pobre é caridade e que o SUS é para atender exatamente aos mais pobres.


AFN – Hoje, o que o senhor diria ao usuário do SUS e àqueles que ainda não o usam?

Temporão –
Ao primeiro, que ele pode ter certeza de que na minha gestão vai perceber no governo – e quando falo isto eu não estou me referindo apenas ao Governo Federal, já que o SUS é uma construção a três mãos da União, estados e municípios – o esforço cotidiano de melhorar a qualidade e a oferta dos serviços de saúde. E para os não usuários do sistema, que pagam seus planos de saúde, olhem para o SUS. De repente, no lado da sua casa, ao lado do seu local de trabalho tem um serviço público de saúde de alta qualidade e que você não usa, não se beneficia dele, porque você desconhece. Você pode ficar surpreendido positivamente com a qualidade daquele serviço.


AFN – Em parte, esses usuários sabem, ainda que indiretamente, dessa qualidade a que está se referindo. A política de transplantes, por exemplo, é apenas uma delas...

Temporão –
Além dos transplantes, há o Programa Nacional de Imunizações, os procedimentos de alta complexidade, mas muitas vezes, por mais paradoxal que possa parecer, essas pessoas não têm clareza nem consciência de que estão usando o Sistema Único de Saúde, o SUS. Imaginam que estão usando alguma benesse que apareceu na vida delas. Quando eu estava no Inca [Instituto Nacional de Câncer, do qual Temporão foi diretor], muita gente vinha me perguntar se o Inca também pertencia ao SUS. Como o Governo Federal não pode fazer propaganda do seu sistema, no sentido publicitário estrito, temos que melhorar a comunicação e a informação sobre o SUS, pois percebo que as pessoas não estão adequadamente informadas sobre o sistema público de saúde. E as pessoas precisam saber, exatamente, que tipo de serviço pode ser buscado em uma rede como a do Rio de Janeiro, por exemplo.


AFN – Além de mais este desafio, o da comunicação, há um outro bastante específico para o cargo: o Ministério da Saúde tem o maior orçamento da Esplanada. Como vai ser conviver com as pressões que esse tipo de situação favorece?

Temporão –
Essa é uma questão que tem que ser vista no seguinte sentido: os recursos que o Ministério da Saúde hoje tem para financiar o que está escrito na Constituição brasileira são claramente insuficientes. Recentemente, a imprensa voltou a publicar artigos sobre essa velha discussão, eficiência versus recursos, se estes seriam ou não suficientes, a má utilização destes etc. Essa é uma questão que não resiste a uma análise mesmo que superficial. O ministro Adib Jatene diz, com muita propriedade, que percebe exatamente o contrário: fica muitas vezes perplexo com a capacidade do SUS de fazer tantas coisas e com tão poucos recursos. Nós temos aqui, evidentemente, de início, uma necessidade de repensar a quantidade de recursos que o Estado coloca à disposição desse sistema, porque o Brasil está passando por um processo de transição demográfica brutal, com o envelhecimento rápido da nossa gente e nós sabemos que, quanto mais idosa é a população, maiores os gastos com assistência. E se nós quisermos cumprir na íntegra o que está na Carta Magna do país, é evidente que o sistema de saúde está subfinanciado. É claro, também, que nós vamos ter que trabalhar essa questão dentro das capacidades do Estado e percebendo, inclusive, restrições eventualmente conjunturais. Agora, a disposição do ministério vai ser a de levar sempre não apenas para o Parlamento, como para o presidente, a necessidade de mais recursos, para que a gente possa expandir, aperfeiçoar e qualificar ainda mais as políticas públicas de saúde.


AFN – Essa seria uma das prioridades da sua gestão? Cite mais duas.

Temporão –
Com certeza. A regulamentação da emenda (constitucional) nº 29 é fundamental para a sobrevivência, para o futuro do SUS. Merece prioridade também ver, com mais atenção e mais cuidado, a situação dos profissionais de saúde. O setor da Saúde, ao contrário de qualquer outro da economia, tem uma dimensão muito interessante, pois quanto mais você incorpora tecnologia de ponta, não necessariamente elimina postos de trabalho. Pelo contrário: você tem um movimento cumulativo; ao incorporar tecnologia, continua necessitando de mais especialistas, de mais profissionais. E nós não vamos construir o SUS que queremos sem que esses profissionais estejam bem remunerados, trabalhando em condições seguras e adequadas, estimulados técnica e científica, e respeitados profissionalmente.A outra prioridade é o fortalecimento e qualificação da atenção básica, ao fazer com que esta, efetivamente, opere de maneira a interferir na dinâmica da média e da alta complexidade, coisa que até hoje não aconteceu.


AFN – E por que isto ocorre?

Temporão –
É como se nós tivéssemos dois sistemas (de saúde) paralelos  que não se conectam, não se falam. A atenção básica, que cumpre um papel muito importante, principalmente em municípios de Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) mais baixo e de pequeno e médio porte, e, de outro lado, a estrutura da alta complexidade, que tem sua dinâmica própria, obedece à dinâmica do complexo industrial da saúde. Para mudar essa disjunção é necessário que a atenção básica cada vez mais se estruture como espaço regulador da alta complexidade, para que o sistema de saúde ganhe em eficiência, e que, inclusive, possamos potencializar os recursos escassos disponíveis.

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