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15/05/2020

O acesso à água e os excluídos da prevenção à Covid-19

Ingrid Fonseca Casazza*


Março de 2020. A Organização Mundial da Saúde (OMS) definiu o surto de Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus Sars-CoV-2, como uma pandemia. No Brasil, as primeiras mortes pela doença eram confirmadas e o distanciamento social foi considerado a medida mais adequada para conter o avanço da Covid-19. Assim como em outras partes do mundo, os brasileiros (os que poderiam) se preparavam para passar muitos dias em suas casas, saindo o menos possível. Corrida aos mercados e às farmácias. O álcool em gel sumiu das prateleiras. A higienização das mãos com álcool em gel é uma importante ação para eliminar o coronavírus e prevenir a doença. No entanto, esta é uma medida complementar ou alternativa, e se torna obrigatória somente na falta de água e sabão. Os meios de comunicação repetem exaustivamente: “para a prevenção ao coronavírus é preciso lavar as mãos com apenas água e sabão, várias vezes ao dia”. Todos os brasileiros têm acesso a água e sabão?

Em meio à disputa pelo álcool em gel para complementar a higienização das mãos, surgiu a preocupação com aquelas populações que não têm acesso adequado a água e sabão, e ficam impossibilitadas de cumprir a medida mais simples para a prevenção à Covid-19. Contudo, a falta de acesso à água para este fim está acompanhada de outros condicionantes que deixam determinadas parcelas da sociedade excluídas da prevenção à doença e mais suscetíveis aos seus efeitos. Refiro-me à distribuição dos recursos hídricos no país e às suas desigualdades históricas. Um exemplo são as populações de rua das regiões metropolitanas: não ocupam postos de trabalho e não possuem vínculos sociais que ajudem em seu sustento. Destituídas de direitos, sobrevivem nas ruas, em condições de extrema pobreza, não têm moradia e menos ainda água encanada. 

Além destas, as comunidades carentes na periferia das grandes cidades também sofrem com formas precarizadas de abastecimento de água e com um conjunto de outros fatores que tornam esses espaços potenciais focos de disseminação do novo coronavírus. A realidade habitacional nestas áreas é a alta concentração de casas com pouco espaço e ventilação. São pequenas residências com poucos cômodos habitados por grande número de pessoas; o que impede o isolamento domiciliar de um morador que apresente sintomas da doença. Em consequência das desigualdades sociais construídas e acumuladas historicamente, os moradores dessas comunidades, em sua maioria, garantem o seu sustento na informalidade, a partir de diferentes formas de subemprego e sem garantias trabalhistas. 

Com as políticas de distanciamento social, foram também os primeiros a serem dispensados dos seus postos de trabalho ou a terem seus ganhos reduzidos. Assim, a condição de pobreza em que vivem se tornou ainda mais latente, dificultando o custeio de produtos de higiene, e fortalecendo o fantasma da fome que debilita a saúde e aumenta a possibilidade de doenças. Sem poder trabalhar de casa e necessitando buscar alguma renda, muitos moradores dessas comunidades continuam se expondo, usando os meios de transporte “alternativos” ou os transportes públicos precários que lhe são disponibilizados. Em ambos, a chance de contágio pelo novo coronavírus é alta. 

Essas comunidades nas zonas periféricas das metrópoles refletem o processo de urbanização, e são habitadas por uma força de trabalho que foi afastada das regiões centrais por não arcar com os custos da valorização imobiliária. A prestação de serviços, dentre os quais a assistência médica, o saneamento básico e o abastecimento de água para as áreas onde residem, não têm sido prioridade dos poderes públicos, e a configuração de provimento destas redes sofre descontinuidade, falta de manutenção e problemas de operação. Assim, nas grandes metrópoles, o abastecimento de água é também marcado pela forte desigualdade sócio-espacial, que beneficia as camadas de maior renda e reserva falta de qualidade e incompletude de atendimento para as favelas e periferias (Prieto, 2019). 

O abastecimento intermitente compromete a qualidade da água e também favorece a contaminação por doenças de veiculação hídrica. Frequentemente, o armazenamento da água que “cai” poucas vezes ao dia, ou fica disponível apenas na “bica” das comunidades, é feito de maneira inadequada e compromete ainda mais a sua potabilidade. Por vezes, esse acúmulo de água acaba servindo também como meio de reprodução de agentes transmissores de doenças como o mosquito Aedes aegypti, transmissor do vírus da dengue, zika e chikungunya. Isso pôde ser visto em São Paulo durante a crise hídrica que acometeu o Estado no ano de 2014. Para manter o abastecimento durante os momentos em que havia redução de pressão na rede, as pessoas passaram a armazenar água, multiplicando criadouros do Aedes aegypti.  

Ainda no que se refere à falta de qualidade da água fornecida, atualmente a cidade do Rio de Janeiro vivencia uma crise; um problema que ainda não havia sido completamente resolvido quando os efeitos da pandemia começaram a aparecer. Desde o início de janeiro de 2020, a Companhia de Águas e Esgotos do Estado (Cedae) tem sido acusada pelos moradores da cidade de estar fornecendo água turva, com cheiro e gosto de terra. A própria empresa chegou a identificar um grande volume de detergentes na água captada pela sua principal estação de tratamento e paralisou a distribuição de água por algumas horas.

A justificativa apresentada para as alterações foi a presença de uma substância orgânica que é produzida quando há muita alga e bactérias na água. A empresa garantiu, no entanto, que não havia indícios de implicações à saúde. Embora este seja um problema que afetou todos os bairros da cidade, as classes alta e média possuem recursos financeiros para comprar água mineral para beber, e até para outros usos, como o preparo de alimentos e medidas de higiene. Os que não podem pagar por essa água, continuam consumindo a água de qualidade duvidosa que os deixa a mercê da contaminação por doenças de veiculação hídrica.  

Atualmente, a escassez de água potável e a falta de acesso a este recurso entre algumas populações é um problema em escala global. Contudo, o nível de abastecimento de água e saneamento não está apenas determinado pela disponibilidade natural deste recurso em um dado território. Além da distribuição hidrográfica e de eventos naturais como as estiagens, o impacto negativo gerado por ações antrópicas têm um poderoso papel no desenhar da crise hídrica, como as que corroboram para as mudanças climáticas e a expansão do desmatamento, da mineração e da agricultura irrigada, que é, por sua vez, a maior responsável pelo consumo de água no Brasil, por exemplo. Outros fatores de agravamento da crise são o desperdício, e a poluição das águas, que não são tratadas para reutilização e seguem recebendo dejetos industriais ou resíduos domésticos.

A preocupação com a escassez de água tem reunido pesquisadores de diversas especialidades, como, por exemplo, antropologia, biologia, sociologia, saúde coletiva, engenharia, história ambiental, história da tecnologia, história da saúde pública e de áreas voltadas para a elaboração de políticas, em projetos que buscam discutir e historicizar as relações entre água e sociedade; algo fundamental para a compreensão dos conflitos, tensões e desafios que giram em torno da questão dos recursos hídricos na atualidade. Através do abastecimento de água e do saneamento ocorreram e (ocorrem) as principais relações entre os seres humanos e o ciclo hidrológico em nosso planeta. Fatores naturais, políticos e sociais estão entrelaçados na construção das mais diversas histórias relacionadas com a água (Juuti, Katko & Vuorinen, 2007; Fagan, 2011; Sonkajärvi & Vital, 2019).  

A história da água, em particular, considera as políticas de Estado e as questões relativas à gestão do recurso, desde legislação a projetos de aproveitamento hídrico. Enfatiza também as concepções sociais acerca deste elemento e como estão relacionadas com a sociedade que as produziu (Tvedt & Oestigaard, 2010). Um importante fator que afetou, ao longo do século 20 (e continua afetando), a disponibilidade e o acesso universal à água, e mesmo contribuindo para a sua escassez, é a mercantilização deste recurso.

Os programas de reforma do setor público na década de 1980 implementaram a liberalização e a mercantilização dos serviços de água e saneamento, com uma retórica, no entanto, de governabilidade democrática e respeito aos direitos dos cidadãos. No entanto, na prática estas políticas aumentaram as condições de desigualdade e injustiça sociais. Na lógica de mercado, o acesso ao recurso só é garantido a quem pode pagar por ele, e, por conseguinte, são privilegiados os interesses de setores agrícolas e industriais que têm na água um insumo essencial para o processo produtivo. A transformação da água em mercadoria, deixando de ser tratada como um bem público e direito coletivo, fica evidente nas políticas de privatização e terceirização dos serviços de abastecimento (Castro, 2005).  

A falta de água potável, bem como a impossibilidade de acesso a serviços de saneamento, afetam seriamente a saúde das populações e os índices de desenvolvimento humano. A crise de água e saneamento afeta principalmente os mais pobres e tem suas razões no poder e na desigualdade, não na disponibilidade física do recurso (Carvalheiro, 2015). Estas mesmas pessoas, já expostas a uma série de doenças, estão entre as mais vulneráveis à Covid-19 uma vez que até a medida mais simples para a prevenção da doença, lavar as mãos adequada e repetidamente, não é acessível para elas. Além disso, estudos recentes têm apontado a presença do novo coronavírus nas fezes das pessoas infectadas e mesmo no esgoto. Embora não se tenha dados sobre a transmissão feco-oral do vírus ou sobre o risco potencial para a saúde de pessoas que consomem a água de rios ou mananciais que venham a ser contaminados, essa possibilidade teria muitas implicações em áreas carentes de infraestrutura de saneamento básico.  

A história da gestão dos recursos hídricos no país ao longo do século 20 tem relação com os problemas da atualidade. Estes seriam decorrência das prioridades estabelecidas pela gestão das águas brasileiras que tratou este recurso mais como uma mercadoria do que como um bem público de fundamental importância social. A primeira medida no sentido de uma legislação específica que gerisse os usos das águas brasileiras foi o Código de Águas de 1934 (Decreto nº 24.643 de 10 de julho de 1934). Este código fez parte de uma política que buscava promover o desenvolvimento econômico do país. Assim, tinha o objetivo imediato de fomentar a produção de energia para a industrialização que se pretendia impulsionar na ocasião. A capacidade geradora de energia elétrica na época estava bem abaixo da demanda de uma sociedade que se urbanizava, industrializava e expandia a fronteira agrícola.  

O componente econômico e a ideologia do desenvolvimento se mantiveram com o maior peso na elaboração de políticas de gestão hídrica na segunda metade do século 20. Embora novos dispositivos regulatórios tenham surgido, na prática, o entendimento predominante dos recursos hídricos como bem de valor econômico prevaleceu. Assim, mesmo tendo o setor elétrico perdido seu protagonismo, na utilização dos recursos hídricos, para o setor de irrigação agrícola nas últimas décadas, no campo os efeitos dessa política continuaram pesando sobre os ribeirinhos. As populações tradicionais, que viviam do que retiravam do rio, foram deslocadas de suas terras para a construção de barragens, implantação de usinas hidrelétricas e outras obras de infraestrutura.

Do mesmo modo, sofreram os impactos dos projetos de irrigação que priorizaram as águas dos rios para a agroindústria. Em localidades do semiárido nordestino, por exemplo, essa política de gestão dos recursos hídricos, voltada para o desenvolvimento, significou o empobrecimento dessa população, que vivia da pesca e da agricultura de subsistência. Dessas populações foi retirado, inclusive, o acesso à água, pois muitas vezes foram realocadas longe das margens dos rios, em regiões sem abastecimento e saneamento, e ainda mais sujeitas aos efeitos das secas. Empobrecidas e também sofrendo as consequências da mercantilização da água, estas populações tiveram uma piora em suas já difíceis condições de vida e ficaram mais suscetíveis a uma série de doenças dentre as quais agora está incluída a Covid-19.  

Desde o final da década de 1970 o direito humano à água e ao esgotamento sanitário vem sendo discutido em esfera mundial. Em 2010 a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas reconheceu o acesso à água e ao esgotamento sanitário como um direito humano. Cinco anos depois, foram pactuados os objetivos de desenvolvimento sustentável para 2030 com a finalidade de erradicar a pobreza. Um dos objetivos estabelecidos foi garantir disponibilidade e manejo sustentável da água e esgotamento sanitário para todos. Como exposto acima, a garantia do direito humano à água e ao esgotamento sanitário está fortemente vinculada à promoção da saúde de grupos vulneráveis. Vulnerabilidade, no âmbito da saúde, está relacionada com aspectos individuais, mas também sociais. Assim, os indivíduos não estão expostos ao adoecimento de forma homogênea e os diferentes contextos sócio-econômicos são determinantes. Nesta perspectiva, adoecimento é entendido como um processo que envolve elementos biológicos, comportamentais, culturais, econômicos, políticos, sociais e ambientais (Neves-Silva & Heller, 2016). 

Em relação à disseminação do novo coronavírus no Brasil entre as populações vulneráveis, medidas emergenciais estão sendo tomadas, como arrendamento de imóveis, para abrigar a população de rua, instalação de lavatórios em locais públicos e ações sociais em comunidades carentes. No entanto, isso não basta. É necessária a elaboração de políticas públicas permanentes e estruturais que amenizem essa situação de vulnerabilidade dos que não têm acesso adequado à água e promovam de fato os múltiplos usos dos recursos hídricos, priorizando aqueles relacionados à saúde e a manutenção da vida.   

*Ingrid Fonseca Casazza é bolsista de pós-doutorado no Departamento de Pesquisa em História das Ciências e da Saúde (Depes) da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) pelo Programa Inova Fiocruz

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