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08/04/2008

O espetáculo sublime dos trópicos nos painéis do Teatro Amazonas

Renata Moehlecke


A natureza amazônica pujante e diversa. Essa foi a temática escolhida para compor a iconografia do salão nobre de um dos palcos brasileiros mais importantes no início do século 20: o Teatro Amazonas. Mas quais foram os motivos que sustentaram a escolha e a reprodução da beleza dos trópicos nos quadros decorativos? É o que a antropóloga Ana Maria Lima Daou tenta desvendar em artigo publicado na revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos, editada pela Casa Oswaldo Cruz (COC) da Fiocruz.


 O painel <EM>A onça caçando a capivara</EM> faz parte do Salão Nobre do Teatro Amazonas

 O painel A onça caçando a capivara faz parte do Salão Nobre do Teatro Amazonas


Segundo a pesquisadora, a construção do edifício do teatro, inaugurado em Manaus em 1896, assumiu um caráter emblemático na sociedade amazonense e brasileira da época. Políticos, comerciantes e intelectuais locais visavam refletir, a partir do próprio espaço e por meio da arquitetura da fachada (que apresenta alegorias referentes à mitologia greco-romana), os ideais de civilização e progresso europeus, significativos para a afirmação da identidade da elite. No entanto, as particularidades regionais não ficaram de fora: as obras para a decoração interna, concluídas nos anos subseqüentes à inauguração, expressavam os interesses e expectativas quanto à natureza dos trópicos, com base em um ideal romântico característico do Brasil oitocentista.


Nos painéis, é possível observar cenas de paisagens amazônicas: águas, árvores, nuvens, musgos, flores, pássaros, folhagens, florestas alagadas, animais, troncos e galhos retorcidos, variações de luzes e de luminosidade. “A idealização da natureza é complementada pela idealização dos habitantes ou mesmo por sua ausência”, comenta a antropóloga. “Não há referências às numerosas tribos nativas e ao indígena”. A única exceção é a pintura conhecida como Ceci e Peri, que ocupa o centro da principal parede do salão. O quadro é uma homenagem à ópera de Carlos Gomes O guarani e apresenta, em destaque, duas figuras humanas.


 <EM>Ceci e Peri</EM>

Ceci e Peri


“As pinturas do salão pretendem promover um afastamento da concepção de natureza tropical e em especial amazônica ‘adversa’, agressiva e inadequada à vida e à civilização. Estimulam uma atitude positiva e contemplativa diante da natureza domesticada e idealizada por aqueles que, a distância, fizeram os acertos finais sobre os temas retratados”, afirma Ana Maria Daou. “As paisagens dispostas nos painéis tornam possível a aproximação do observador dessa natureza aparentemente impenetrável e desconhecida, sobretudo dos europeus, para quem as pinturas foram em boa parte concebidas”.


A pesquisadora acrescenta que a intenção era retratar a região de forma asséptica e disponível aos investimentos e à ação de homens empreendedores, que estavam de acordo com políticas migratórias. Era a idéia de um ambiente "pródigo" e singular que ajudava a garantir a construção de uma memória coletiva internacionalmente favorável para essa região do Brasil, apontando-a como uma das mais promissoras.


Ana Maria ainda destaca que a temática dos quadros proporcionava uma dimensão propagandística da área com o claro objetivo de dirimir os efeitos negativos das notícias que propagavam os aspectos inóspitos e a profusão de doenças. “Na primeira década do século 20, campanhas contrárias à ida para a Amazônia ocupavam os noticiários brasileiros e também os jornais italianos que difundiam a imagem da região associada a febres tropicais, sendo a mais temida a febre amarela”, diz a pesquisadora.


 <EM>As garças</EM> (detalhe) 

As garças (detalhe) 


“O que se observa nas pinturas do salão nobre reitera a perspectiva romântica tão presentes nas representações da monarquia tropical e em todo o imaginário do império brasileiro em que a natureza é tomada como base material do Estado monárquico”, esclarece a estudiosa. “Seja na literatura, na poesia, na pintura, a paisagem e a natureza brasileira têm lugar central como emblema da nacionalidade e preenchem a falta de produtos advindos da cultura ou do acúmulo de realizações materiais ou espirituais do homem que a noção de civilização encerra, perspectiva que se redobra de sentido no momento em que os estados amazônicos ganham projeção inédita nos cenários nacional e internacional”.

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