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09/12/2011

Obra rara sobre erradicação de mosquito da malária no Nordeste ganha nova edição

Fernanda Marques


Fred L. Soper e D. Bruce Wilson lideraram uma campanha sanitária no Nordeste brasileiro que culminou com a erradicação, em tempo recorde – apenas 35 meses –, do mais eficiente dentre os vetores da malária, o mosquito Anopheles gambiae. Considerado leitura obrigatória para os interessados em saúde pública no Brasil, o relatório final dessa campanha – que descreve detalhadamente os procedimentos e métodos de trabalho sob o ponto de vista de seus diretores – foi originalmente publicado em inglês, em 1943. Pouco depois, em 1945, o relatório ganhou uma edição em português, mas não uma tradução fiel. Ela se voltava para as atividades do Serviço de Malária do Nordeste e a questão dos doentes de malária, enquanto o original era centrado nas ações da Fundação Rockefeller e na campanha de erradicação do mosquito. Decidiu-se, então, retraduzir o original – encontrado hoje em dia somente na seção de obras raras de bibliotecas especializadas –, incorporando alguns elementos de destaque da primeira versão em português. O resultado desse esforço – coordenado pelo pesquisador Sergio Goes de Paula – é o volume Anopheles gambiae no Brasil – 1930 a 1940, o mais novo título da Coleção História e Saúde | Clássicos & Fontes, da Editora Fiocruz.



A história começa em março de 1930, nas proximidades de Natal, onde foi constatada – pela primeira vez nas Américas – a presença do A. gambiae, oriundo da África. Os vetores causaram grande preocupação e graves epidemias. Em 1938, o Rio Grande do Norte, então com 240 mil habitantes, registrou 50 mil casos de malária e 5 mil mortes pela doença – em alguns municípios, mais de 90% da população ficaram enfermos. Diante desse cenário, a Fundação Rockefeller, em conjunto com o governo brasileiro, instituiu o Serviço de Malária do Nordeste, organizado sob as bases do Serviço Nacional de Febre Amarela. O objetivo explícito: erradicar o A. gambiae do Brasil. E o implícito: disseminar nos sertões o espírito da modernidade e do capitalismo.


“Em seu estardalhaço, as campanhas sanitárias da Fundação Rockefeller eram também campanhas publicitárias”, afirma Sergio Goes. “Suas ações espetaculosas pretendiam não só enfrentar os agravos à saúde, mas também funcionar como exemplo, não só de seus métodos, mas também do espírito do capitalismo – cuja importância, eficiência e modernidade ela queria ensinar aos governos e às populações com que trabalhava. A Rockefeller se via como pedagoga, queria mostrar que havia uma maneira melhor, mais racional, de fazer as coisas. Ela não queria apenas resolver problemas de saúde pública; simultaneamente, em sua práxis, ela expunha uma ideologia”, resume o organizador, que buscou melhor situar o livro para o leitor atual. Por isso, o volume da Coleção História e Saúde | Clássicos e Fontes, além de reproduzir o relatório em si, traz trechos de uma entrevista com o professor Leônidas Deane (1914-1993), que trabalhou na campanha; um cordel da época, literatura que trata do lado social e humano da doença; e o ensaio No Tempo dos Mosquitos, assinado pelo próprio Sergio Goes.


Nesse ensaio, o pesquisador defende o argumento de que o tempo é variável fundamental para se entender as ações do Serviço de Malária do Nordeste. E mais: de acordo com Sergio Goes, o tempo é peça-chave na explicação de por que a campanha teve êxito na erradicação do mosquito, mas não atingiu seus propósitos ‘pedagógicos’. “O exemplo paradigmático fracassou: o Brasil continuou o mesmo e o Nordeste sem A. gambiae continuou igual, sem pressa, seguindo sua própria ordem. A modernidade, cuja chegada a Rockefeller pretendia acelerar, não aconteceu”, diz o organizador da obra.


O êxito na erradicação do mosquito esteve associado não somente a aspectos técnicos e científicos, mas também – e, talvez, sobretudo – à gestão meticulosa da campanha e à administração do tempo segundo os princípios tayloristas. Havia tarefas e metas a serem cumpridas em determinado prazo, tal qual numa linha de produção industrial. “Foi construída uma estrutura concêntrica e verticalizada em que a base maior de tra¬balhadores diretos (guardas) executava as tarefas-fim, submetidos à rígida fiscalização dos guardas-chefes, que eram fiscalizados pelos supervisores, que eram fiscalizados pelos mé¬dicos, que eram fiscalizados pelos diretores de Divisão – tudo sob o olhar perscrutador dos americanos”, descreve Sergio Goes. E essa cadência de trabalho não combinava com o ritmo tradicional nem com as condições de vida das populações locais.


Pautada pelo uso da medicina para a inclusão das populações na sociedade industrial, a filantropia da Rockefeller encarava a doença como grande obstáculo à expansão capitalista, pois enfermos não são produtivos e, sob essa ótica, a eliminação da malária representaria um importante passo para o aumento da riqueza. A realidade do Nordeste brasileiro, porém, era bem mais complexa.


“Em pouco mais de dois anos já não havia mais Anopheles gambiae no Nordeste e es¬tava comprovada a viabilidade da erradicação, embora a área continuasse com malária. Acontece que antes da chegada do A. gambiae ela já estava presente por anofelinos existen¬tes no Nordeste brasileiro e algumas vezes atingia níveis epidêmicos, ao contrário do que afirmava Soper, que, preocupado em defender sua estratégia, deixou de considerar os dados que mostravam essa realidade”, afirma o presidente da Fiocruz, Paulo Gadelha, que assina o prefácio do livro. “Contra a posição de Soper, Evandro Chagas chegou a argumentar que a epidemia de 1938-39 havia sido particularmente grave não pela presença do novo mosquito, mas pela fome e pelo ciclo de ida e volta dos reti¬rantes para a Amazônia em consequência da seca”, completa.


Apesar dessas limitações, a campanha foi um sucesso no sentido de que demonstrou a viabilidade de se erradicarem mosquitos transmissores de doença. E Soper soube bem capitalizar esse sucesso: divulgou amplamente seu trabalho à frente do Serviço de Malária do Nordeste, após o qual dirigiu o Global Malaria Eradication Program da Organização Mundial da Saúde (OMS) e foi nomeado diretor executivo da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), onde permaneceu até 1959. “A competência de Soper é inegável, assim como indiscutível é a importância de seu livro. Por isso a Fiocruz se orgulha de, 66 anos depois da primeira edição em português, lançar esta nova publicação, mais completa que a primeira”, sublinha Gadelha.


O livro Anopheles gambiae no Brasil – 1930 a 1940 é uma das 22 obras que serão lançadas pela Editora Fiocruz no próximo dia 14/12, às 18h30, na Fundação Planetário (RJ). Saiba mais aqui.



Publicado em 9/12/2011.

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