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05/08/2008

Os desafios do enfrentamento das ações judiciais de medicamentos

Informe Ensp


A experiência, no campo da assistência farmacêutica, é longa para Lore Lamb, proveniente da época em que trabalhava na Secretaria de Saúde do Paraná, o que a credenciou a ser assessora técnica do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass). Recentemente, a assessora esteve na Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp) da Fiocruz participando de um centro de estudos que abordou a questão da judicialização no acesso a medicamentos no Brasil, ressaltando que é fundamental trazer a academia para o debate. Na oportunidade, a assessora foi entrevistada pelo Informe Ensp.


 Lore: essa área tem adquirido uma importância enorme tanto pela questão da judicialização quanto pela questão dos medicamentos de dispensação de caráter excepcional (Foto: Virgínia Damas)

Lore: essa área tem adquirido uma importância enorme tanto pela questão da judicialização quanto pela questão dos medicamentos de dispensação de caráter excepcional (Foto: Virgínia Damas)


Como se deu o processo de judicialização no país? Quais os primeiros estados que tiveram pacientes entrando na justiça em busca de tratamento?


Lore Lamb: Foi nessa última década que, sem dúvida nenhuma, demos início a esse processo de judicialização, especialmente na área de medicamentos e isso não é nenhuma coincidência. Na verdade, isso veio com a incorporação de novas tecnologias na área de medicamentos e o surgimento de medicamentos biológicos, a maior parte de alto custo destinados a tratamentos de patologias que até essa última década tinham poucas possibilidades de abordagens terapêuticas.


O processo de judiciação veio num crescimento muito grande, à medida que esses medicamentos foram desenvolvidos lá fora e, devido ao grande acesso à informação, os pacientes hoje em dia quando são defrontados com algum tipo de diagnóstico vão à internet, acessam algum site de busca com o nome da sua patologia e têm acesso a tudo que há de mais recente, seja com alguma evidência, seja ainda em fase de estudos clínicos. Entretanto, na iminência de não ter outra perspectiva de tratamento, esse paciente procura todos os meios para ter acesso àquilo que ele eventualmente acredita ser a sua esperança de cura, tratamento ou postergação de outro desfecho.


A questão da judicialização teve início em algumas secretarias de Saúde, em locais onde o Judiciário conta com uma estrutura diferenciada, com uma nova visão dos direitos dos cidadãos mais presentes. Em relação à patologia, isso começou com a Aids. Essa doença foi a grande precursora das demandas judiciais e do acesso num grupo que se organizou frente a um diagnóstico extremamente difícil que tinha da sua patologia, e foi migrando para outras áreas. Um dos estados em que realmente as demandas tiveram início, de forma mais pesada e acirrada, foi o Rio Grande do Sul, que eu acho que tem a ver com a questão da postura do judiciário. Outro foi São Paulo, devido ao acesso a novas tecnologias, a tratamentos inovadores etc.


Qual a melhor forma para os gestores enfrentarem esse problema da judicialização na saúde?


Lore: Eu acho que para essa área não existe uma fórmula mágica. Eu não sei dizer qual é a melhor forma para os profissionais do SUS enfrentarem as questões das demandas judiciais. Eu acho que é por isso que vários estados estão debatendo a questão da judicialização. Cada um está procurando um caminho diferente. O debate veio crescendo no momento em que, efetivamente, os gestores estavam sendo ameaçados até de irem para a prisão, o que chegou a acontecer, ou, então, quando vinha algo da Justiça colocando o nosso nome oficial sem que soubéssemos do que se tratava. Com isso, os holofotes voltaram-se um pouco para uma área da assistência farmacêutica que era vista como um almoxarifado de medicamentos. Aquele é o lugar onde se compra e distribui medicamentos. Foi aí que os gestores viram, pela primeira vez, a importância que esse setor tinha e de tentar realmente fazer com que as pessoas que lá atuam profissionalmente deixassem de ser meros depositários de medicamentos.


Existe o outro lado também que é o esforço que tem sido feito para estruturar áreas que dêem conta das demandas judiciais e das respostas administrativas. Mais do que efetivamente estruturarmos a assistência farmacêutica e assumirmos as nossas fragilidades na gestão da saúde como um todo, estamos nos voltando para estruturar uma área só para dar conta das demandas judiciais. Seria maravilhoso se esses dois lados pudessem andar paralelamente, mas as demandas judiciais hoje exigem um esforço das pessoas que estão na assistência farmacêutica e isso é bastante complicado. Pessoalmente, eu acho que a assistência farmacêutica tem um papel importantíssimo na questão das demandas judiciais. Porém ela tem que ser um órgão que assessore uma outra área que dê conta de toda essa área jurídica. Existe uma questão hoje que ainda não está resolvida: é o fato do Judiciário, em geral, não entender a linguagem que nós usamos. E nós muito menos entendíamos a linguagem utilizada por eles. Hoje em dia, nós temos que achar uma linguagem comum, ou temos que ter um glossário para ambas as partes.


Qual a posição do Conass nessa questão da judicialização?


Lore: O Conass promove assembléias dos secretários mensalmente e, desde que eu comecei a trabalhar mais próximo ao Conselho, isso entre 2003 e 2004, vejo que não há uma assembléia que o tema assistência farmacêutica não seja motivo de pauta. Essa área tem adquirido uma importância enorme tanto pela questão da judicialização quanto pela questão dos medicamentos de dispensação de caráter excepcional. Quando apareceu a questão da discussão do projeto de Lei do senador Tião Viana, diziam que nós queríamos restringir o acesso dos pacientes aos medicamentos. Isso não é verdade. O que eu acho que precisamos ter bem claro é que esse acesso tem que se dar mediante alguns critérios eminentemente técnicos.


Como o SUS pode enfrentar esse problema da judicialização?


Lore: Em primeiro lugar, no SUS não é possível que você disponibilize medicamentos para os quais você não tem evidências cientificas suficientes. Eles têm que ser seguros e eficazes. Preferencialmente, o fornecimento tem que ter por base protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas que sejam elaborados pelos gestores, com base na melhor evidência, mas que sejam submetidos à consulta publica que permitam a participação da sociedade cientifica e até civil, para que o Ministério da Saúde possa responder aceitando ou não as sugestões que vêm da sociedade.


Outra questão é fazer com que os pacientes que tenham iniciado seus tratamentos e tenham tido acesso a tratamentos mediante estudos clínicos, tenham assegurado o seu tratamento posterior pela própria indústria farmacêutica. É muito comum que pacientes participem de estudos clínicos e trabalhos clínicos, e a industria, depois, larga esses pacientes e, para continuarem seus tratamentos, venham para a área publica demandando que o fornecimento seja feito pelo gestor. Isso não é justo; ao menos enquanto esse medicamento não tenha sido incorporado oficialmente para fornecimento pelo SUS.


Deve ser feita na academia maior divulgação de como o SUS se estrutura, quais as suas normas, etc. Eu acho que, muitas vezes, deixamos de lado a figura central da questão da judicialização que é o prescritor. Sem prescrição não há judicialização.


Todas as demandas judiciais que chegam para os gestores são procedentes?


Lore: Não, nem todas. Precisamos reconhecer que temos demandas judiciais improcedentes sim, mas também temos demandas judiciais que são procedentes. Nós temos que reconhecer e tentar resolver não só o caso daquele paciente que vai ter acesso a um medicamento por demanda judicial, mas de todos os outros pacientes portadores de determinado agravo ou patologia e que necessitem do medicamento. Eu diria que ela é procedente quando você tem um medicamento padronizado, o paciente atende a todos os critérios estabelecidos num protocolo e o medicamento não esta disponível para esse paciente. Então, falta de medicamento, sem uma mínima perspectiva de compra do medicamento, é procedente de demanda judicial em que o paciente tem que recorrer ao judiciário para ter acesso àquilo que lhe é de direito.


Outra questão que eu acho procedente é quando se tem um protocolo clínico e uma diretriz terapêutica de 2002 para uma patologia que, sabidamente, você tem outras abordagens terapêuticas baseadas em evidencias cientificas, e esse medicamento não é disponibilizado. Como fazer uma defesa dizendo que tem por base um protocolo que se sabe estar desatualizado? Então, a atualização de protocolos permanentemente ou, no mínimo, anualmente, é fundamental, nem que seja para dizer que não houve alteração nenhuma, que as evidências não indicam que esse protocolo seja alterado. Os protocolos que estão disponíveis têm uma característica muito acadêmica e mesmo nós que estamos no sistema temos dificuldade de interpretação. Nós não conseguimos cumprir tudo que está lá. Isso tem que ser revisto porque é extremamente dinâmico.


As improcedentes eu nem cito, e são muitas as existentes. Você tem alternativas terapêuticas e outras disponíveis, mas há sempre a insistência com relação à determinada marca, mesmo quando você tem genérico e tantas outras coisas que acontecem por aí, como doses inadequadas, tratamento por tempo inadequado, etc.


Há algum tipo de medicamento que mereça atenção especial?


Lore: Eu diria ser procedente hoje a questão da oncologia, pois tivemos muitos avanços nos últimos anos. No passado, as clinicas se credenciavam pelo SUS para tratar pacientes apresentando quais seriam as suas abordagens terapêuticas para determinadas doenças. O que acontece hoje quando um paciente vai se tratar no serviço privado? Esse serviço escolhe tratar apenas aquilo no que vai ter lucro. O que não tem retorno financeiro, ele passa os credenciados que fazem parte do SUS. Então, a oncologia é a área que mais temos demandas judiciais hoje. Eu acho que tem coisas que são improcedentes, mas o que é procedente tem por base as evidências cientificas. Uma das alternativas seria a elaboração de protocolos nacionais que orientassem aquele que deva ser o tratamento mínimo ofertado nas clinicas aos pacientes portadores de determinada patologia na área de oncologia. Oncologia é uma área que tem que ser imediatamente discutida e não podemos ficar como estamos.


Existe algum dado com o custo que as demandas judiciais geram para os estados?


Lore: Nós conseguimos recentemente fazer um levantamento bastante preciso com as informações que foram prestadas pelas secretarias de Saúde e de medicamentos que estão padronizados como excepcionais, porém são fornecidos fora dos critérios hoje estabelecidos pelo protocolo, ou porque o CID não está contemplado, como é o caso das anticitocinas, ou porque estão em quantidades fora dos protocolos. O gasto dos estados hoje é de R$ 13 milhões por mês. Porém esses números não contemplam os medicamentos oncológicos e outros que estão sendo fornecidos e que vamos tentar levantar em breve.

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