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09/02/2012

Pós-graduação em vigilância sanitária faz dez anos com muitas contribuições

Pablo Ferreira


O álcool etílico sob a forma coloidal – o famoso álcool gel – ganhou destaque após uma resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que proibiu a venda, junto à população, de álcool etílico líquido (com graduações acima de 54º GL). A proibição foi justificada, pois era alto o número de acidentes domésticos envolvendo o produto, sobretudo com crianças. Hoje, o álcool gel é comumente comercializado em farmácias e utilizado para higiene e limpeza doméstica. Não existe, porém, um procedimento laboratorial válido para fiscalizá-lo: os laboratórios de vigilância sanitária ainda não contam com uma metodologia validada que permita garantir a eficácia do álcool coloidal na eliminação de micro-organismos.


 Atualmente, o PPGVS oferece cursos de atualização, especialização, aperfeiçoamento profissional (na modalidade <EM>lato sensu</EM>), mestrados profissional e acadêmico e doutorado (<EM>stricto sensu</EM>) em vigilância sanitária

Atualmente, o PPGVS oferece cursos de atualização, especialização, aperfeiçoamento profissional (na modalidade lato sensu), mestrados profissional e acadêmico e doutorado (stricto sensu) em vigilância sanitária



 

O problema serviu de estímulo para a bióloga Alessandra Oliveira de Abreu, que, em sua dissertação de mestrado, propôs uma metodologia inédita para verificar a eficácia antimicrobiana do álcool gel. A ideia foi adaptar uma técnica laboratorial já existente e validada, chamada de ‘método para avaliação da atividade bactericida de desinfetantes nas formas de spray e aerossol’. “Nossa metodologia adaptada pode ser uma solução, pois os resultados que obtivemos se mostraram confiáveis”, afirma Alessandra.

 

Em uma primeira etapa, a bióloga preparou em laboratório um álcool líquido a 70º GL e o avaliou por meio de uma técnica conhecida como ‘método de diluição de uso’. Esta técnica funciona da seguinte maneira: pequenos cilindros de aço contaminados com bactérias são tratados com um produto desinfetante líquido (como o álcool, por exemplo). Posteriormente, esses cilindros são transferidos para tubos com meio de cultura, ou seja, com nutrientes, temperatura e condições favoráveis para o crescimento e proliferação de micro-organismos. Passadas 48 horas, se alguma bactéria tiver sobrevivido à aplicação do álcool no cilindro de aço, ela encontrará oportunidade de se reproduzir no meio de cultura, o que atestará a ineficiência do produto desinfetante. Caso contrário, o produto estará aprovado, como ocorreu com o álcool preparado por Alessandra.

 

A pesquisadora, então, testou se obteria os mesmos efeitos pelo método com spray. Este difere do primeiro ensaio pelo fato de empregar lamínulas de vidro, em vez dos cilindros de aço, e aplicar o álcool por meio de um borrifador. A troca de técnica foi necessária porque o álcool gel, ao ser aplicado nos cilindros, forma bolhas, o que deixa algumas áreas contaminadas sem contato com o produto. “Isso não ocorre nas lamínulas. Além disso, elas se aproximam mais da realidade da atividade doméstica, visto que, normalmente, as pessoas aplicam o álcool em panos para depois passá-los em superfícies”, justifica a pesquisadora.

 

Testado e aprovado o método com spray para o álcool líquido, a bióloga buscou adaptá-lo para o álcool coloidal. Como o borrifador não funcionava para a aplicação do gel, Alessandra o substituiu por uma pipeta. Na sequência, testes foram realizados em dias variados e por diferentes técnicos do INCQS. Os resultados obtidos foram considerados “bastante promissores” e a dissertação de Alessandra foi aprovada. Apesar do sucesso, a nova técnica ainda precisa ser validada por meio de estudos que confrontem e analisem seus resultados quando ela for aplicada por profissionais de outros laboratórios do país. “É o que pretendo realizar em meu doutorado”, finaliza a bióloga.

 

Dez anos a serviço da saúde pública

 

O trabalho de Alessandra é um de muitos produzidos no âmbito Programa de Pós-Graduação em Vigilância Sanitária (PPGVS) do Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde (INCQS/Fiocruz), o primeiro programa do gênero criado no Brasil, em 2001. Comemorando uma década, o sucesso do PPGVS é reconhecido pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), que laureou uma de suas teses em 2006 e recentemente elevou a avaliação de seus mestrado e doutorado acadêmicos da nota quatro para cinco. Destacam-se também as contribuições de trabalhos que hoje servem de parâmetro para o Sistema Único de Saúde (SUS). “Sem dúvida o caminho trilhado até agora foi muito positivo, mas precisamos promover ainda mais a saúde”, afirma o farmacêutico André Gemal, então diretor do INCQS quando o PPGVS surgiu e um de seus idealizadores e fundadores.

 

O programa também foi o primeiro interdisciplinar da Fiocruz. “Um de meus orientandos do mestrado está pesquisando testes de potência de interferon humano e, para tanto, estamos explorando ideias da imunologia, bioestatística, química e microbiologia”, ilustra a atual coordenadora do PPGVS, a bióloga e professora Ana Cristina Nogueira. Essa interdisciplinaridade também se expressa nos eventos promovidos, como seminários, encontros e palestras – a aula inaugural deste ano, por exemplo, foi ministrada pelo professor de filosofia André Martins. “O objetivo é sempre o de estarmos antenados com tudo o que possa atualizar e contribuir para a evolução de conhecimentos em vigilância sanitária”, completa.

 

Além disso, o PPGVS tem servido de estímulo para os próprios funcionários do INCQS, como testemunha o farmacêutico Antônio Eugênio de Almeida. Integrante da primeira turma de doutores formados pelo programa, sua tese foi premiada pela Capes em 2006 (box à esquerda). “Foi uma realização profissional e pessoal”, diz. Seu doutorado, inclusive, já inspirou outros alunos, desdobrando-se em três mestrados (um concluído e dois em andamento). “A criação do PPGVS me estimulou muito. Logo me candidatei ao doutorado e consegui completá-lo mesmo aos 50 anos de idade, com duas filhas e uma rotina pesada de trabalho aqui no INCQS. Teria sido muito mais complicado buscar uma pós fora daqui”, conta.


No entanto, Ana Cristina enfatiza que, embora o PPGVS esteja aberto para candidatos do próprio INCQS, não há favorecimento. “Fazemos questão de que a competição com quem vem de fora seja de igual para igual, baseada apenas no mérito”, salienta a coordenadora. Com efeito, durante os processos seletivos, todos os candidatos têm seus anteprojetos avaliados por professores e doutores convidados externos, que não fazem parte do programa nem do INCQS.

 

A necessidade de uma maior inserção do INCQS no Sistema Único de Saúde (SUS) inspirou a criação do PPGVS. De acordo com Gemal, o surgimento da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), em 1999, representou uma grande transformação e sinalizou novos caminhos para o INCQS. “No final daquela década, novas tecnologias e produtos passaram a exigir mais de nós, tanto no que diz respeito à fiscalização quanto no apoio à indústria, no sentido de melhorar os processos produtivos”, explica Gemal. Nesse cenário, tornou-se imperativo formar novos quadros competentes e críticos, o que, consequentemente, redefiniu o papel do INCQS.

 

As metas traçadas na criação do PPGVS, contudo, ainda precisam ser aprofundadas. “Tenho acompanhado o programa com bastante entusiasmo desde sua fundação, mas ainda não estamos satisfeitos. É preciso, sim, avançarmos mais no SUS; é necessário que nossa produção intelectual esteja cada vez mais, na prática, a serviço da vigilância sanitária e esse é o nosso principal objetivo para o futuro”, afirma o atual diretor do INCQS, o farmacêutico Eduardo Leal.

 

Atualmente, o PPGVS oferece cursos de atualização, especialização, aperfeiçoamento profissional (na modalidade lato sensu), mestrados profissional e acadêmico e doutorado (stricto sensu) em vigilância sanitária. Leal faz questão de destacar o curso de especialização, ministrado in loco nos laboratórios centrais de saúde pública dos estados brasileiros. Em breve, os profissionais envolvidos no programa, com estreita colaboração da Anvisa, pretendem criar uma revista científica especializada em vigilância sanitária.

 

Vacina eficiente

 

A tese do farmacêutico Antônio Eugênio de Almeida atestou a eficiência da vacina conjugada contra o Haemophilus influenzae tipo b ou Hib – um dos micro-organismos causadores da meningite. Almeida concluiu que, após o início do processo de vacinação, os casos infecciosos por Hib diminuíram significativamente (em cerca de 80%). Hoje, a vacina é aplicada e administrada nos postos de saúde de maneira rotineira em crianças de 2, 4 e 6 meses de idade.

 

Além disso, a pesquisa premiada também lançava um alerta sobre a necessidade de uma vigilância epidemiológica constante e apurada em relação à bactéria H. influenzae, pois o autor já observava a predominância de outros tipos (que não o tipo b) nos casos de meningite notificados até então, além de outros processos infecciosos relacionados ao mesmo micro-organismo. “Os médicos, ao diagnosticarem casos suspeitos de infecção invasiva por H. influenzae, logo medicam o paciente, mas não se preocupam em enviar o material colhido desse paciente para análise em laboratório, o que dificulta uma vigilância da evolução das infecções”, atesta. Almeida entende que, para superar esses problemas, é preciso que haja uma coordenação melhor entre os laboratórios de vigilância sanitária do país e uma maior conscientização dos médicos.

 

Água de qualidade para hemodiálise

 

A bióloga Joana Angélica Ferreira também foi aluna do PPGVS. Em duas ocasiões: na especialização e no mestrado profissional. Os trabalhos de Joana no INCQS foram decisivos para que, em pouco mais de dez anos, a incidência de produtos insatisfatórios relativos à água utilizada para hemodiálise no Estado do Rio de Janeiro caísse de 70% para apenas 3%. Isso foi possível graças a um programa de monitoramento implementado pelo INCQS para controlar a qualidade desses produtos. Os detalhes científicos dessa história foram reunidos na monografia e na dissertação escritas por Joana, envolvida desde o início no programa de monitoramento e sua atual coordenadora.

 

Na especialização, a pesquisadora mostrou o nível de contaminação microbiana da água tratada para hemodiálise e quais eram os micro-organismos causadores dessa contaminação. Já no mestrado profissional, ela descreveu a diversidade genética do agente mais presente (a bactéria Pseudomonas aeruginosa), sua suscetibilidade a antimicrobianos e sua capacidade de produzir biofilme. “O biofilme resulta de uma tendência natural que as bactérias têm de aderir a superfícies inertes ou vivas, formando uma película que as protege de agressões externas, como certos processos de desinfecção”, explica a bióloga.

 

A experiência do INCQS com água para hemodiálise começou em outubro de 1998. Devido aos índices de infecção entre pacientes renais, as vigilâncias sanitárias do Estado e do Município do Rio de Janeiro pediram ajuda ao instituto. No ano seguinte, montou-se um programa de monitoramento e, logo de início, constatou-se índices de contaminação de até 70% daquela água. Após estudos, o INCQS determinou em que parte do processo de tratamento da água ocorria a contaminação e como agir para evitá-la. Além disso, os estudos contribuíram para aprimorar a legislação, inserindo limites mínimos para a presença de bactérias na água tratada para hemodiálise, o que resultou em uma melhoria considerável de sua qualidade.

 

Agora, os trabalhos de Joana e a experiência do INCQS servem de modelo em outros estados e o instituto também tem qualificado profissionais da área, por meio de cursos, oficinas e visitas. “Hoje, a água para hemodiálise no Rio de Janeiro pode ser considerada ótima e isso só foi possível graças à cooperação entre as três esferas de governo, por meio da Fiocruz”, conclui Joana.


Publicado em 8/2/2012.

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