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21/08/2008

Paleopatologia: pistas sobre as atividades dos primeiros habitantes do litoral do RJ

Renata Moehlecke


A interpretação de lesões ósseas em esqueletos pré-históricos é uma ferramenta comumente utilizada em estudos de paleopatologia como uma tentativa de vislumbrar o dia-a-dia de povos antigos. Esse instrumento de trabalho foi o escolhido pela mestranda Angélica Estanek para ajudar na compreensão do estilo de vida das populações sambaquieiras, que habitaram o litoral do Rio de Janeiro há cerca de 3 mil anos. Em dissertação recém-defendida na Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp) da Fiocruz, a paleopatologista analisou a ocorrência de osteoartroses (alterações nas articulações) em remanescentes ósseos exumados do sítio Ilhote do Leste, na Ilha Grande, e a relação dessas com as atividades cotidianas desse grupo.


 Vista de uma das praias da Ilha Grande, no litoral sul fluminense

Vista de uma das praias da Ilha Grande, no litoral sul fluminense


“Poucos trabalhos foram elaborados sobre estas perspectivas para populações sambaquieiras”, diz a pesquisadora. “Neste trabalho, a análise das osteoartroses teve como principal objetivo compreender a distribuição das atividades laborais associadas ao uso discriminado do corpo nesta população e, também, não apenas neste sítio, compondo uma visão ampla sobre os pescadores-coletores-caçadores”. Para a pesquisa foram examinados 30 indivíduos da coleção que se encontra sob a guarda do setor de Antropologia Biológica do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), sendo 12 mulheres, 15 homens e 3 que não foi possível identificar o sexo. Seis principais conjuntos articulares foram verificados: ombro, cotovelo, punho, quadril, joelho e tornozelo. O estudo se baseou em uma metodologia inédita de esquemas de quadrantes, que considera o mecanismo de movimento de cada articulação.


Dos esqueletos verificados, 80% dos femininos e 66,7% dos masculinos apresentaram sinais de osteoartrose. “A distribuição e intensidade de osteoartroses observadas nos remanescentes ósseos em Ilhote do Leste foram vinculadas à ocorrência de estresse produzido pela solicitação das articulações na realização das tarefas cotidianas, reflexo das escolhas culturais, sociais e econômicas e das estratégias intrínsecas ao seu estilo de vida”, explica Angélica.


As mulheres mostraram percentuais mais altos de lesões nos membros superiores (18,3%) do que os homens (14,7%). O contrário ocorreu para os membros inferiores: homens, 11,1%, e mulheres, 6,2%. “O predomínio de osteoartroses entre os indivíduos femininos nos membros superiores sugere a participação comum das mulheres nas atividades do grupo, mesmo aquelas que exigissem esforços mais intensos”, comenta a pesquisadora. “Possivelmente, além das atividades desempenhadas pela população geral, haveria outras, executadas principalmente pelo grupo feminino, tais como a coleta de frutos e gravetos, preparação de alimentos e fabricação e/ou conserto de determinados utensílios, que mesmo exigindo pouco esforço, configuram-se em movimentos repetitivos”.


Além disso, deslocamentos pouco extensos e feitos com pouca freqüência podem explicar a menor ocorrência de lesões nos membros inferiores. Em comparação, nos homens, a freqüência de lesões nos membros inferiores aponta que a exploração do território talvez não fosse uma atividade realizada com intensidade, mas seria uma tarefa quase que exclusivamente masculina.


Quanto aos conjuntos articulares, as lesões no ombro foram o principal diferencial para as tarefas do sexo masculino e feminino. Nas mulheres, o lado esquerdo demonstrou ser o mais afetado, o que sugere um uso intenso devido a atividades como coleta e preparo de alimentos. Já os homens apresentaram igual percentual de dano em ambos os lados, o que pode estar ligado a movimentos decorrentes da natação ou de remadas. “A localização do sítio numa ilha sugere a constante necessidade dos habitantes de Ilhote do Leste de deslocamentos marítimos utilizando embarcações tanto para circunavegar a ilha, quanto para ir ao continente”, esclarece Angélica.


Publicado em 21/08/2008.

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