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13/09/2011

Parceria com Feneis integra trabalhadores surdos à Fundação

Mara Figueira


Há seis anos, quando começou na Fiocruz, Carina Garcia trabalhava na fotocopiadora. Com o tempo, sua chefe na secretaria da Diretoria de Recursos Humanos (Direh) viu que a jovem tinha potencial e lhe deu mais atribuições. Hoje, Carina lida com arquivo, inclui processos no sistema informatizado da Fundação, recebe e entrega documentos, entre outras funções. “Ela é uma ótima funcionária: inteligentíssima, tem muita facilidade para se comunicar”, conta a secretária da direção de Recursos Humanos da Fiocruz, Fátima Regina Resende Marques, que supervisiona o trabalho da assistente administrativa. Não é à toa que Carina recebeu uma promoção no ano passado. Uma conquista e tanto para qualquer profissional, mas com sabor especial para esta trabalhadora. “Sempre me esforcei para me equiparar a um ouvinte”, conta ela, que tem 31 anos e nasceu surda.


 A bolsista Lilha Barbos recorre à cartilha de Libras para se comunicar com Cristiane Vicente em um laboratório da Fiocruz (Foto: Peter Ilicciev)

A bolsista Lilha Barbos recorre à cartilha de Libras para se comunicar com Cristiane Vicente em um laboratório da Fiocruz (Foto: Peter Ilicciev)


A história de Carina, uma das 168 pessoas surdas que atualmente trabalham na Fiocruz, ilustra bem os objetivos da parceria mantida pela Fundação com a Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (Feneis) desde 1994. “Uma das iniciativas sociais da Fiocruz, o projeto Inserção da Pessoa Surda no Mercado de Trabalho via Terceirização de Serviço está voltado para a proteção social, a socialização e a preparação profissional para o mercado de trabalho”, explica o coordenador da iniciativa, Jorge da Hora, também gestor e assessor jurídico de contratos da Direh e diretor jurídico do Sindicato dos Trabalhadores da Fiocruz (Asfoc-SN). Os participantes do projeto têm a carteira assinada pela Feneis, recebem de R$ 600 a R$ 1.400 por mês (dependendo da função), além de auxílio-alimentação, plano de saúde e seguro de vida em grupo. Os profissionais estão distribuídos por 13 pontos da Fiocruz e se dedicam a atividades administrativas, laboratoriais e de manutenção.

 

Suami Miguez, por exemplo, trabalha hoje como eletricista, mas começou, há 15 anos, a prestar serviços na Fiocruz como office boy do RH da Diretoria de Administração do Campus (Dirac). Quando surgiu uma vaga na elétrica, Miguez, na época pai de duas crianças, pediu uma oportunidade, mesmo sem nunca ter atuado na área e nem ter conhecimentos específicos. “O chefe me alertou, dizendo que, aqui, o trabalho era duro e eu teria que ralar, mas eu disse que queria o trabalho mesmo assim”, conta. Já havia outros surdos trabalhando na área e Suami aprendeu tudo o que precisava na prática. Ficou feliz porque o salário aumentou. Hoje, atende principalmente o Instituto Oswaldo Cruz e, para driblar qualquer problema de comunicação, segue em dupla com um colega para o local onde há algo a ser resolvido. Sua meta é sempre deixar tudo perfeito. “Sou um bom profissional: nunca recebi qualquer reclamação”, conta ele, com orgulho.


Comunicação construída dia a dia


Na primeira semana de trabalho na Fiocruz, o surdo é sempre acompanhado por um intérprete da Língua Brasileira de Sinais (Libras). Depois, conforme for necessário, o tradutor pode voltar à cena. “Mas a ideia é que os colegas de trabalho e a chefia aprendam a se comunicar com o surdo”, explica o preposto da Feneis na Fiocruz, Renato Tadeu. “Existe uma dificuldade na comunicação porque a maioria das pessoas não saber Libras”, conta Cristiane Maria Vicente, que trabalha no Laboratório de Transmissores de Hematozoários do Instituto Oswaldo Cruz. “Quando tenho dúvidas, procuro escrever, perguntar”.


No momento, está em negociação o início, em 2012, de mais um curso de Libras voltado para ouvintes na Fiocruz. Edições anteriores aconteceram em 2008 e 2009. “A experiência de trabalhar com a Carina foi tão boa que estudei Libras na Fundação, pois queria me comunicar com ela”, conta Fátima Regina Resende Marques. “Libras é uma língua mesmo e até difícil, de certa forma. Nós que falamos por vezes temos dificuldade com os gestos”.


O curso que Fátima fez tinha duração de 10 meses, acontecia duas vezes por semana, em meio expediente, e contava com 20 alunos. “Apesar da longa duração, não era grande a desistência”, conta Renato Tadeu. “No entanto, estamos estudando a possibilidade de oferecer um curso mais breve e básico, com duração de três meses”. Há também a previsão de lançar um dicionário digital de Libras com palavras e expressões ligadas ao universo da Fiocruz.


Enquanto o curso de Libras e o dicionário não se tornam realidade, a comunicação pode nascer no próprio dia a dia. “O melhor professor de Libras é sempre o próprio surdo”, conta Renato Tadeu. A secretária da Coordenação de Gestão Tecnológica (Gestec), Sandra Correa, por exemplo, conta que o fato de ninguém no setor saber Libras não impede a comunicação com o auxiliar administrativo Henrique Soares. “Apesar das diferenças, nos comunicamos bem. Devagarzinho ele ensina para a gente e, com boa vontade, se consegue encaixar tudo”, conta.


Um tipo de atitude que pode colaborar para que, na relação com essa parcela de trabalhadores da Fiocruz, o mundo do ouvinte não prevaleça, como geralmente costuma acontecer. “Ainda encontramos muitos chefes que aceitam trabalhar com surdos, desde que eles sejam oralizados: saibam ler lábios. Ou seja, o surdo tem que se adaptar ao meu mundo. Mas por que eu não posso me adaptar ao dele?”, pergunta Jorge da Hora. “A gente tem uma tendência de transportar para o que é mais cômodo, para o que não vai dar trabalho”.


Ficha completa


No momento, um levantamento de toda a população surda que trabalha na Fiocruz está sendo feito. Até o fim do ano, a ideia é reunir em um software a ficha completa de cada participante do projeto mantido entre a Fundação e a Feneis: saber a escolaridade, dados familiares, sociais, econômicos e trabalhistas, além de condições culturais e psicológicas. Por questões éticas, algumas das informações serão de acesso exclusivo de assistente sociais e psicólogos, mas o objetivo é que os dados sejam usados como subsídios para programas de intervenção.


“A partir do mapeamento, queremos estabelecer ações efetivas”, explica Jorge da Hora. “O Estado tem vários benefícios para pessoas portadoras de necessidades especiais. Se eu sei que há surdos na Fiocruz com condições de habitação precárias, por exemplo, posso buscar mecanismos para melhorar essa situação. Se há surdos com escolaridade baixa, podemos firmar um convênio com um colégio público”, exemplifica.


Estudar, de fato, é um desejo comum a muitos surdos, que sentem falta sobretudo de mais cursos profissionalizantes. “Os ouvintes estão à frente por conta da formação: a falta de cursos nos atrasa. É algo importante porque, se precisarmos sair daqui e procurar outro emprego, não basta ter só carteira assinada”, explica o eletricista Suami Miguez, que já teve aulas de informática e de atendimento ao cliente na Fiocruz, mas gostaria de ter a oportunidade de focar em sua área.


Vontade compartilhada por Milene Le Comte, que trabalha há 15 anos na Fiocruz e atualmente cuida do arquivo do Núcleo de Saúde do Trabalhador (Nust). Milene, que já fez cursos abertos a todos, como uma especialização em saúde em 2006 na Fiocruz, quer agora se atualizar na área em que trabalha. A ideia é que as informações levantadas sobre a comunidade de surdos da Fiocruz também possam ser úteis para tornar a Fundação um lugar cada vez mais adequado a esse público, que tem necessidades especiais muitas vezes esquecidas.


O auxiliar administrativo da Gestec, Henrique Soares, sente falta de sinalização indicando que em muitos setores da Fundação há surdos trabalhando. Uma comunicação visual que precisa se estender pelo campus, segundo Jorge da Hora. “Circulam diariamente pela Fiocruz 168 surdos, mas quantas placas alertam os motoristas para a presença dessas pessoas, para quem não adianta buzinar? Quantos prédios contam com um sistema de alarme de incêndio que não seja sonoro?”, questiona.


Carina Garcia, por sua vez, gostaria de contar com mais intérpretes, principalmente no Nust e no Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana da Escola Nacional de Saúde Pública - onde os surdos podem fazer, de forma gratuita e mediante agendamente, o exame de audiometria. ”Quando passamos mal, em situações que precisamos de mais privacidade, a comunicação se torna mais difícil”, explica ela.


Ações que podem tornar a Fundação não só um local de trabalho ainda melhor para os surdos, mas também uma referência quando o tema é integração de pessoas com necessidades especiais. “Toda a comunidade surda quer trabalhar na Fiocruz: a instituição tem um nome muito forte, que abre portas”, conta Renato Tadeu, preposto da Feneis.


Um desafio a mais


O projeto Inserção da Pessoa Surda no Mercado de Trabalho via Terceirização de Serviço tem caráter permanente e o desafio de incluir, de fato, seus participantes no mercado de trabalho. A proposta é habilitar os profissionais que sejam surdos a se desenvolverem e se capacitarem para que possam buscar novas conquistas no setor privado ou pleitear vagas em órgãos públicos.


“Essas pessoas que se aperfeiçoam aqui estarão mais preparadas para se inserirem profissionalmente, inclusive com aprovações em concursos públicos”, afirma o diretor de Recursos Humanos da Fundação, Juliano Lima. “A Fiocruz e outras instituições públicas têm aberto oportunidades, mediante vagas específicas, para que haja portadores de necessidades especiais em seu quadro de funcionários. No concurso realizado pela Fundação em 2010, por exemplo, 43 vagas foram destinadas a candidatos portadores de necessidades especiais”, relata o diretor. O quantitativo foi equivalente a 5% do total de vagas abertas (850), em cumprimento à legislação em vigor.


Dicas


Deficiente auditivo ou surdo? Qual termo usar? O mais indicado é optar por “surdo”, palavra que as próprias pessoas que não ouvem usam para se referir a si mesmas. Outras dicas úteis:

Fale devagar e de frente para o surdo

Não dê as costas ao surdo

Não grite

Não chame o surdo de mudo

Se estiver dirigindo, lembre-se: talvez buzinar não seja a forma mais eficiente para alertar o pedestre da sua aproximação ou velocidade. E se ele for surdo?


Publicado em 12/9/2011.

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