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15/10/2007

Pesquisa aborda a percepção sobre os resíduos da Idade Média aos dias de hoje

Fernanda Marques e Igor Cruz


Ao longo da história, foram construídas diferentes percepções sobre o lixo, ou melhor, sobre os resíduos produzidos pelo homem. Desde a perspectiva religiosa na Idade Média, em que os resíduos eram associados à doença e ao pecado, até uma visão mais ecológica nos nossos dias, o lixo ajuda a contar a história das civilizações. O tema é abordado em um artigo da doutora em saúde pública Marta Pimenta Velloso, professora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp) da Fiocruz. O trabalho será publicado na revista Ciência & Saúde Coletiva, da Associação Brasileira de Pós-graduação em Saúde Coletiva (Abrasco). A pesquisadora também acompanhou profissionais que trabalham com o lixo para saber como lidam com o assunto e como a sociedade percebe esse tipo de trabalho.


 Trabalho do artistia plástico Farnese Andrade, cuja matéria-prima foi retirada do lixo

Trabalho do artistia plástico Farnese Andrade, cuja matéria-prima foi retirada do lixo


Integrante do Grupo de Direitos Humanos e Saúde Helena Besserman (GDIHS) da Ensp, Marta consultou livros do século 16 da seção de obras raras da biblioteca da Universidade de Coimbra, em Portugal. Os livros falavam sobre a peste negra do século 14. A partir dessas e de outras leituras, a pesquisadora identificou quatro fases na história da percepção sobre o lixo – definido como tudo aquilo que se joga fora, que não presta, resultante de atividades domésticas, comerciais, industriais e hospitalares.


A primeira fase é a Idade Média, quando a idéia de lixo remetia, sobretudo, aos resíduos eliminados pelo organismo, como fezes, urina, pus e o próprio corpo em decomposição. As secreções dos indivíduos doentes eram especialmente temidas. "As pessoas ligavam a doença ao contato com os enfermos. Estes, muitas vezes, considerados alvos de um castigo divino", explica Marta.


Assim, os resíduos – associados à impureza e ao sofrimento físico e mental – eram representados como uma ameaça ao homem, principalmente devido ao surgimento de grandes epidemias no continente europeu, com alto índice de mortalidade. A palavra peste nem sempre se referia à peste negra, pois havia outras doenças epidêmicas, como gripe, tifo, cólera e varíola.


O papel dos microorganismos


A segunda fase é o Renascimento, no qual as descobertas científicas, em especial a circulação sanguínea e a respiração, inspiraram medidas de higiene nas cidades. "A idéia das artérias conectando os diferentes órgãos do corpo humano motivaria a construção de ruas principais com ruas paralelas arejadas e canos de esgoto que saíam das casas e desembocavam em uma tubulação comum", conta a pesquisadora.


Contudo, somente com os trabalhos do célebre cientista francês Louis Pasteur, no final do século 19, assumiu-se que os microrganismos eram os causadores de doenças e que medidas de saúde pública deveriam ser tomadas para combater esses agentes invisíveis e seus transmissores. Nessa terceira fase, no Brasil, o sanitarista Oswaldo Cruz tornou-se famoso por disseminar essas idéias e colocá-las em prática, o que incluiu campanha para eliminação de ratos, controle da febre amarela e vacinação obrigatória contra a varíola, esta última especialmente polêmica na época.


"Hoje, todo mundo fala em lixo hospitalar, atômico, químico e emissão de gases poluentes. Mas, até meados do século 20, as percepções sobre o lixo estavam muito restritas à área médica, ou seja, às doenças", diz Marta. A partir da década de 70, no Brasil e em outros países, o lixo começou a ter seu conceito alargado e a preocupar ecologistas, sobretudo por causa da industrialização crescente. A relação entre resíduos e poluição ambiental teve destaque durante a Eco-92, no Rio de Janeiro. Desde então – a quarta fase –, o debate sobre lixo e meio ambiente ganha força. "No entanto, a saúde ambiental é um direito que já vem sendo negado, sobretudo aos mais pobres", adverte Marta, que sempre esteve atenta às relações entre a sociedade e o lixo que ela produz.


De lixeiros a artistas


Pouco depois do boom ecológico provocado pela Eco-92, Marta entrevistou lixeiros da Companhia Municipal de Limpeza Urbana (Comlurb) do Rio de Janeiro e, durante uma semana, acompanhou-os em suas rotinas de trabalho. A pesquisadora comprovou que os lixeiros tinham consciência de que sua profissão envolvia riscos químicos, biológicos e mecânicos, como cortes e atropelamentos. Mas a principal constatação do estudo foi o desprezo da população por aqueles que trabalham com os restos.


 Aterro sanitário em Pernambuco (Foto: Carlos Morel)

Aterro sanitário em Pernambuco (Foto: Carlos Morel)


Esse dado motivou Marta a fazer uma comparação entre duas outras categorias profissionais que lidam com a sucata: catadores e artistas. O foco do trabalho era a criatividade no tratamento dos restos resultantes da atividade humana. "A essência do trabalho de catadores e artistas é a mesma: transformar os restos. Mas os primeiros são vistos de forma depreciativa pela sociedade e os segundos têm suas obras valorizadas", analisa a pesquisadora.


Ela entrou em contato com associações de catadores de lixo, como uma em Belo Horizonte, e analisou a obra de artistas plásticos, como a do mineiro radicado no Rio de Janeiro Farnese de Andrade. Este criava suas obras a partir de lixo que coletava nas praias cariocas. Algo similar era feito pelos catadores, que atuavam na associação em oficinas de reciclagem de papel, corte e costura, pintura e escultura. O objetivo era acolher moradores de rua e ensiná-los a tirar proveito do lixo. Eles chegaram a construir um bar somente com materiais reaproveitados, das mesas e cadeiras aos objetos de decoração. "Apesar do estigma social que pesava sobre aqueles catadores de lixo e moradores de rua, a criatividade no trabalho os ajudava a elevar sua auto-estima", conclui Marta.


 

A peste


Também chamada peste negra ou febre do rato, a peste é causada pela bactéria Yersinia pestis e transmitida ao homem pela picada da pulga de roedores. Os primeiros sintomas surgem após dois a cinco dias, quando, em geral, ocorre inflamação dos gânglios linfáticos (peste bubônica). A doença pode evoluir para uma pneumonia, com transmissão de pessoa para pessoa, ou levar a uma septicemia. A letalidade é alta quando não há tratamento imediato.

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