23/07/2009
Ricardo Valverde
Ao assumir o poder, em 1956, o presidente Juscelino Kubitschek acreditava – como era pensamento corrente na época – que um dos motivos do atraso social e econômico do Brasil era o país ver grassar entre seus cidadãos, em especial aqueles mais pobres, um grande número de doenças. Entre as chamadas endemias rurais – às quais JK se referia como “doenças de massa” – estava uma enfermidade hoje praticamente desconhecida, a bouba – uma doença de pele, uma treponematose não venérea, semelhante à sífilis nos sintomas iniciais, e que pode ser altamente debilitante para tecidos e ossos se não for tratada. Ao criar o Departamento Nacional de Endemias Rurais (DNERu), naquele mesmo ano, o governo lançou também o Programa de Erradicação da Bouba, episódio um tanto esquecido sobre o qual se voltam novas luzes a partir da dissertação de mestrado Basta aplicar uma injeção? Saúde, doença e desenvolvimento: o Programa de Erradicação da Bouba no Brasil (1956-1961), defendida no Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) pelo historiador Érico Silva Muniz, sob orientação de Gilberto Hochman.
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Da esquerda para direita: Celso Arcoverde (de costas, no canto), Felipe Nery Guimarães, o presidente Juscelino Kubitschek e Mauricio Medeiros (ministro da Saúde) (Foto: Acervo Família Nery Guimarães) |
“O estudo ressalta como uma campanha de erradicação de uma endemia rural, estruturada em torno de uma ‘bala mágica’ – a penicilina injetável –, defrontou-se com os quadros de fome e desnutrição no interior do país, problemas que, a princípio, estavam fora de suas atribuições”, argumenta Muniz, que, até se interessar pelo tema, também não conhecia muito a doença. Décadas atrás, a bouba era comum no Nordeste, em determinadas regiões de Minas Gerais e na Baixada Fluminense (território que, na época, incluía o que hoje se chama de Região dos Lagos). O Programa da Bouba percorreu os estados, em campanha itinerante, em seus primeiros cinco anos – prazo para que a doença fosse erradicada, de acordo com as autoridades de saúde da nova administração. Era o “otimismo sanitário” do governo JK em ação.
A expectativa se dava por terem surgido novos tratamentos e remédios, o que favorecia a implantação de campanhas contra as endemias rurais, como malária, varíola, febre amarela, bouba e bócio. Além disso, a bouba foi a primeira doença que recebeu um programa de erradicação em escala global, com assistência técnica da Organização Mundial da Saúde (OMS). A enfermidade também era encontrada na América Central, no Caribe, no Sudeste Asiático e em alguns países da África.
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Mário Pinotti (ministro da saúde) e Felipe Nery Guimarães (Foto: Acervo Família Nery Guimarães) |
Entre os personagens da campanha destacou-se o médico Felipe Nery Guimarães, pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz (IOC) e que se tornou o coordenador-geral do programa. Guimarães foi responsável, ainda nos anos 1940, pelos primeiros testes de aplicação da penicilina contra a bouba. A ação foi feita em alguns pacientes, moradores de Araruama (RJ) e Rio Bonito (RJ), trazidos para o Hospital de Manguinhos – atual Instituto de Pesquisa Clínica Evandro Chagas (Ipec/Fiocruz). “A bouba era uma doença que comprometia as forças para o trabalho de homens e mulheres pobres do interior e teve ao longo da história diferentes enquadramentos interpretativos que produziram distintas ações profiláticas e terapêuticas. No início do século 19, a doença foi considerada de origem africana e incurável. Até meados do 20, o isolamento em barracões foi o método indicado para evitar contaminação. A partir da Segunda Guerra Mundial, a definição da penicilina em dose única como o antibiótico capaz de curar a bouba criou as bases para a campanha”, diz Muniz.
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Cartilha da Bouba (Fonte: Acervo Biblioteca do Ministério da Saúde) |
Para o historiador, o programa brasileiro, além de estar inserido nos planos de desenvolvimento de Juscelino, relacionava-se também com a tradição de debate a respeito das endemias rurais, enquadrando-se entre as políticas sanitárias brasileiras e as concepções de doença, saúde e desenvolvimento da época. O espírito da campanha para erradicação da bouba foi o mesmo que predominou em outras campanhas nos anos 1950: ações temporárias voltadas para a eliminação de uma doença específica, utilizando uma dada tecnologia, sem buscar alterar as condições de vida da população-alvo. A história da campanha da bouba indica as condições, possibilidades e limites de programas de erradicação associados a projetos de desenvolvimento.
“Os efeitos da ‘bala mágica’ produziram grande diminuição dos casos da enfermidade no Brasil, onde foi finalmente declarada erradicada em meados dos anos 1960. O sucesso gerou um esquecimento por parte das autoridades sanitárias, dos médicos e governos do flagelo da bouba. Não se tem mais memória do que é a bouba. Já nos anos 1970 a quantidade de boubáticos voltou a crescer em comunidades rurais na África e pouco se conhece sobre a situação nas Américas. Sem programas de controle, vigilância ou atendimento em saúde, com as dificuldades em diagnosticá-la devido à falta de treinamento das equipes de saúde, a moléstia classificada hoje como ‘doença tropical negligenciada’ parece retornar e vitimar, como sempre, os mais miseráveis nas mais pobres áreas rurais de África, Ásia e Américas”, alerta Muniz, lembrando que o Sudeste Asiático pretende erradicar a bouba até 2012.
Publicado em 23/07/2009.