21/05/2005
Sarita Coelho
Nojo da relação, vontade de se lavar imediatamente, perda do desejo sexual, risco de gravidez indesejada e contaminação por infecções sexualmente transmissíveis são aspectos classicamente relacionados às vítimas de estupro por desconhecidos. Mas eles também podem se manifestar dentro dos próprios lares, quando ocorre um ato sexual "cedido", e não desejado, como obrigação conjugal. Apesar de deixar essas marcas, o sexo cedido na relação conjugal quase nunca é nomeado pelas mulheres como violência sexual. É o que mostram os resultados parciais de uma pesquisa qualitativa feita com mulheres que denunciaram a violência conjugal, publicado na última edição da revista científica Cadernos de Saúde Pública.
Escrito por Sônia Maria Dantas-Berger e Karen Mary Giffin, da Escola Nacional de Saúde Publica Sergio Arouca (Ensp), unidade da Fiocruz, o artigo A violência nas relações de conjugalidade: invisibilidade e banalização da violência sexual? busca compreender em que medida os estereótipos de gênero e as condições materiais de sobrevivência impediram a visibilidade do fenômeno da violência sexual conjugal. O estudo também aponta a possibilidade dessa violência estar relacionada às transformações na divisão sexual do trabalho, especialmente ao desmonte da figura do homem provedor, e ao aprofundamento da dupla jornada feminina, para além das tarefas domésticas e gestão afetiva da família, a provisão material da casa.
A pesquisa se baseou em entrevistas feitas com nove mulheres com idades entre 25 a 51 anos que denunciaram violência conjugal no Centro Integrado de Atendimento à Mulher (CIAM) do Conselho Estadual da Mulher do Rio de Janeiro, considerado referência na atenção psicossocial e jurídica a casos de violência e discriminação contra mulheres. Também foram entrevistadas em um hospital público três vítimas de estupro por desconhecido.
O motivo registrado para a procura do serviço de atendimento à mulher em todos os nove casos foi a violência conjugal, sendo oito denúncias de lesões corporais e uma de ameaça. Em cinco das ocasiões houve a associação da violência física com a psicológica, entre as quais, discriminações, intimidações, e ameaça. Não foi encontrado nenhum registro de violência sexual nas fichas de primeiro atendimento das mulheres. No entanto, relatos posteriores mostraram possíveis situações de violência sexual em quatro casos.
Para muitas entrevistadas, as expectativas de realização de vida se refletiam no matrimônio e na constituição da família. No entanto, essa expectativa de felicidade e progresso não foi correspondida com o casamento, quando as mulheres se viram sozinhas nas funções domésticas e no sustento familiar. A queixa também recaía na falta de ambição dos companheiros, alguns em situação crônica de desemprego. Nesses casos, quanto mais elas cobravam dos parceiros, mais o conflito entre o casal se acentuava.
O sexo foi um dos motivos mais freqüentes para as brigas. Todas as mulheres relataram situações em que o parceiro insistia na relação apesar de ela não querer. Dizer "não" ao sexo como "débito conjugal" ou como forma de protesto para expressar sua mágoa ou decepção com seus parceiros, por outro lado, favorecia reações violentas. Dessa forma, a relação sexual ocorria muitas vezes na forma de coerção ou como "cláusula" prevista como obrigação conjugal. Algumas vezes, as mulheres "cediam" à relação sexual por temerem a agressão física, a perda de apoio financeiro ou acusações de infidelidade.
Nenhuma delas fez denúncia prévia dessa situação, pouco nomeada como violência. Para elas, a violência sexual esteve associada àquilo que transgride a moralidade, por exemplo, o sexo anal para algumas mulheres. As pesquisadoras ainda ressaltam um fato relevante a ser melhor explorado em estudos subseqüentes: os relatos de violência física e de atentados contra a vida foram mais freqüentes entre os nove casos de violência praticada pelos maridos do que entre aqueles três casos de estupro por desconhecidos investigados.