De acordo com dados da Secretaria Estadual de Saúde, o estado de São Paulo ultrapassou em menos de um mês, em janeiro, o número de casos de febre amarela e mortes notificados em 2024 (quando foram confirmados dois casos, com um óbito). Ao todo, em 2025, já são sete casos da doença em humanos, todos no interior paulista.
Este já é o maior número de casos desde 2019, quando foram registrados 64 casos autóctones (contraído na própria região onde a pessoa vive) e 12 óbitos em todo o estado de São Paulo. A única forma de prevenção contra a febre amarela é a vacinação. No entanto, a vigilância da doença no país é contínua. É o que explica a bióloga e pesquisadora da Fiocruz Marcia Chame, coordenadora da Centro de Informação em Saúde Silvestre (CISS/Fiocruz) e da Plataforma Institucional Biodiversidade e Saúde Silvestre (Pibss/Fiocruz). Em entrevista, ela aborda como a Fiocruz vem contribuindo na contenção da expansão de circulação do vírus e na prevenção de ocorrência de surtos.
CISS/Fiocruz: Diante do cenário atual da febre amarela em São Paulo, como está sendo feita a preparação da rede de serviços de saúde e quem são os principais setores envolvidos nas ações regionais e nacionais?
Marcia Chame: A vigilância de febre amarela no Brasil é contínua e, após os surtos extra-amazônicos de 2016, fortaleceu-se com novas tecnologias e parcerias. Desde 2017, a Coordenação Geral de Arboviroses do Ministério da Saúde, em cooperação com a Plataforma Institucional Biodiversidade e Saúde Silvestre da Fiocruz, que desenvolve o SISS-Geo, pesquisadores da [Superintendência de Controle de Endemias] Sucen/SP, da [Universidade de São Paulo] USP e profissionais de diversas secretarias estaduais e municipais de saúde treinaram mais de 3 mil técnicos de todos os estados brasileiros e DF para a vigilância continuada da febre amarela e outras arboviroses. Esta estratégia é composta de múltiplas etapas que devem estar alinhadas e envolve a responsabilidade, participação e atenção de toda a rede de serviços e, em especial, da sociedade.
A detecção precoce da circulação do vírus da febre amarela e a prevenção começam na identificação de primatas mortos não humanos ou doentes na mata ou próximas a ela. Esta informação está basicamente nas mãos da população e dos [Agentes Comunitários de Saúde] ACSs, [Agentes de Combate às Endemias] ACEs, Agentes de Saúde da Família, guardas-parque e profissionais e da sociedade que estão nos territórios. Estes devem informar ao serviço de saúde ou ambiente local a ocorrência para que o processo de investigação inicie o mais rápido possível. Mas também está nas mãos dos médicos nos hospitais, na diferenciação do diagnóstico, especialmente quando se trata de viajantes não vacinados para locais de matas.
Com a informação correta e precisa da presença de macacos mortos ou doentes as equipes de saúde municipais ou estaduais são responsáveis pela investigação em campo e a coleta de amostras dos animais que são enviadas aos laboratórios de referência para certificação da presença no vírus. Já faz tempo que se sabe que os macacos morrem antes das pessoas. Com a informação rápida, é possível identificar as áreas e corredores de transmissão do vírus, identificar as espécies de macacos envolvidas, capturar as espécies de mosquitos que são efetivamente os transmissores da febre amarela, reforçar a vacinação dos moradores e sensibilizar visitantes para não visitarem as áreas de matas se não estiverem vacinados a pelo menos 10 dias.
Toda a estratégia mobiliza diferentes agentes e serviços e, se o fluxo deste processo estiver bem-organizado, ele é efetivo, eficaz e de custo reduzido. A redução desde 2019 de mais de 90% das mortes humanas por febre amarela e ações de conservação dos macacos tem sido conquistada e se dá de modo contínuo. Com a Covid-19 e a dengue nos últimos anos, não se falou mais de febre amarela, mas o vírus continua aí, não desapareceu e traz a cada dia novos desafios para a saúde que não podem ser esquecidos.
A vacina é segura, está disponível, a estratégia de vigilância é eficaz e pela primeira vez podemos agir antes da ocorrência de surtos.
CISS/Fiocruz: Como a Fiocruz vem apoiando o Estado de São Paulo na contenção da expansão de circulação do vírus e na prevenção de ocorrência de surtos em outras regiões?
Marcia Chame: A equipe da Secretaria de Saúde do estado de São Paulo integra a estratégia de prevenção da febre amarela e os treinamentos para o uso do SISS-Geo que são realizados no Brasil. Com os casos recentes de febre amarela no estado de São Paulo, fomos convidados pela Divisão de Doenças Transmitidas por Vetores e Zoonoses/CVE/CCD/SES-SP a realizar, nos dias 14 a 17 de janeiro de 2025, o treinamento de uso do SISS-Geo para 28 técnicos da vigilância em saúde dos municípios de Ribeirão Preto e quatro municípios estratégicos da região (Luís Antônio, Guatapará, Barrinha e Jaboticabal). Na semana seguinte, em conjunto com a Coordenação Geral de Arboviroses do Ministério da Saúde, demos continuidade a este treinamento para cerca de 60 técnicos de outros 26 municípios do estado. Esses treinamentos estão em curso em novos encontros remotos.
O objetivo dos treinamentos é capacitar os técnicos responsáveis pelas equipes locais e regionais para utilizarem todas as funcionalidades e ferramentas desenvolvidas no SISS-Geo para a vigilância de epizootias e o Módulo SUS, para agilizar a vigilância e as medidas de controle necessárias. Neste momento, com o aumento do número de casos em humanos, aumentar a sensibilidade dos serviços de saúde dos municípios e chamar atenção da população para avisar e registrar os macacos mortos e doentes no SISS-Geo é fundamantal para que os gestores possam acompanhar, em tempo real, os caminhos da dispersão do vírus e atuar nas ações de prevenção e controle.
CISS/Fiocruz: Desde 2016, a Plataforma Institucional de Biodiversidade e Saúde Silvestre da Fiocruz dedica-se ao desenvolvimento de modelos computacionais para identificar áreas favoráveis à ocorrência de febre amarela e outras zoonoses. Como são desenvolvidos estes modelos e identificadas as áreas favoráveis à ocorrência?
Marcia Chame: Antecipar o risco de doenças é um dos maiores desafios quando se trata daquelas cujos agentes infecciosos circulam entre animais silvestres, humanos e mesmo os domésticos – as zoonoses e arboviroses. Para buscar maior entendimento e enfrentar este desafio reunimos pesquisadores da área da geografia, da modelagem computacional, da ecologia, para propor modelos que integram dados da presença do vírus da febre amarela, quer seja em pessoas ou macacos mortos ou doentes pela infecção viral. A partir do local das ocorrências os modelos correlacionam a localidade e o conjunto de características ambientais que ali estão presentes.
Atualmente, com o uso dos registros georreferenciados no SISS-Geo e os diagnósticos positivos ou negativos, gera-se por meio de técnicas de IA, aprendizagem de máquina, modelos genéticos, dentre outros, modelos combinados que identificam os fatores que coocorrem nas mesmas localidades dos casos positivos e onde os casos são negativos. Desta forma, é possível identificar áreas com maior ou menor favorabilidade de ocorrência da febre amarela em todo o País. Importante ressaltar que a qualidade dos dados é fundamental para que os modelos sejam mais precisos.
Como se trata de identificar as áreas mais favoráveis do país e, com isso, apoiar ações de controle e prevenção, por exemplo, onde a vacinação deve ser reforçada, todo o Brasil foi caracterizado considerando uma grade de 8,5 milhões de pontos, com 1km de distância entre cada ponto. Para cada ponto calculam-se estimativas de variáveis como temperatura e tipo de floresta, dentre diversas camadas ambientais com 30 m de resolução. Essa caraterização resulta em aproximadamente 10 bilhões de análises por pontos (200 GB de dados) que são processados em supercomputadores, em parceria com o LNCC/MCTI. As bases de dados ambientais incluem o uso e cobertura do solo gerado pelo Mapbiomas, altitude da USGS-Nasa, e variáveis climáticas da CHIRPS e NCEP/CFSR. Assim, são considerados a presença de todos os tipos de vegetação do país, presença de estradas, plantações, pastos, áreas urbanas, temperatura, precipitação, umidade do ar e suas diversas variações ao longo do tempo. São então, modelos que também podem ser gerados para qualquer outra zoonose.
CISS/Fiocruz: A partir de informações e dados captados pelos serviços de vigilância, quais mecanismos de alertas apoiam a prevenção da febre amarela e a cobertura vacinal?
Marcia Chame: O Sistema identifica por algoritmos automatizados anormalidades nos animais que são registrados no SISS-Geo pelos colaboradores voluntários, profissionais de saúde, ambiente e outros colaboradores. Nestes casos, envia alertas por e-mail em tempo real, distribuídos simultaneamente aos gestores de saúde municipais, estaduais e nacionais cadastrados para que as providências sejam tomadas. Os alertas indicam a localização, imagens e todas as informações do animal. Assim o gestor identifica as condições do animal para coleta de amostras para análise, organiza materiais e equipe para o deslocamento e diante mão, se a suspeita é de febre amarela, já pode avaliar a cobertura vacinal das pessoas na área e reforçar a vacinação. Com isso, rapidamente se protege as pessoas com a vacina oportuna, otimiza a logística da investigação, pois não irá se perder nos caminhos, garante a qualidade do diagnóstico e economiza recursos.
Além disso, os gestores podem no SISS-Geo Web acompanhar os registros de macacos de outros municípios e estados e já se preparar previamente para a chegada do vírus e reduzi os impactos sobre os humanos.
CISS/Fiocruz: Desde 2019, a equipe do SISS-Geo Fiocruz é a principal colaboradora do Grupo de Modelagem da Febre Amarela (GruMFA), coordenado pela Coordenação-Geral de Vigilância de Arboviroses CGARB do Ministério da Saúde. Quais respostas e questões prioritárias que permeiam o controle da febre amarela no país são investigadas pelo GruMFa?
Marcia Chame: A geração de modelos de ocorrência de espécies e de nicho ecológico é uma prática comum nos estudos de ecologia em todo o mundo. Para que sejam construídos, também se usam métodos que correlacionam a presença dos indivíduos com diversos fatores ambientais e ecológicos que permitem identificar quais são importantes para que cada espécie viva num determinado território. A ocorrência de zoonoses também é um fenômeno ecológico. Então começamos a discutir e a construir as bases e métodos para os modelos de favorabilidade de zoonoses em 2014. Avançamos para a febre amarela levando em consideração a ocorrência de macacos mortos e doentes e as centenas de variáveis ambientais disponíveis. Em 2016, quando o surto chegou na região Sudeste já tínhamos alguns modelos gerados e os apresentamos a Coordenação de Vigilância em Saúde da Fiocruz e ao Ministério da Saúde. A utilidade dos modelos pareceu obvia naquele momento. Houve reuniões com instituições estrangeiras, mas modéstia à parte, nossos modelos e outros desenvolvidos por pesquisadores brasileiros sempre foram mais potentes. Naquela época os dados eram municipalizados, como ainda são no Sinan.
O SISS-Geo trouxe a tecnologia que, além da rapidez, permite o uso de registros georreferenciados e o saldo inovador para evolução significativa dos modelos de previsão, especialmente quando se vive as mudanças climáticas. Considerando os diversos setores e pesquisadores envolvidos na produção dos modelos no Brasil, fizemos na Fiocruz, em 2018, a primeira reunião para discutir modelos e métodos. Daí nasceu o Grupo de Modelagem de Febre Amarela – GruMFA criado pela Coordenação Geral de Arboviroses/MS, que desde então reúne especialistas, gestores de diversos setores antes do início do período sazonal para discutir e atualizar os resultados dos modelos que apoiam as ações nacionais para a febre amarela.
CISS/Fiocruz: Como é a experiência do SISS-Geo no controle da Febre Amarela no Brasil?
Marcia Chame: O Brasil dispõe de muitos e excelentes especialistas em Febre Amarela nas suas diversas áreas de conhecimento. No entanto, os gargalos entre os fluxos de informação burocráticos e lentos, os dados municipalizados e sem coordenadas geográficas, a notificação em papel com inúmeros campos sem preenchimento, a necessidade de municípios e estados operarem em planilhas separadas que dependem de trabalho braçal para unificação, sistemas de notificação que não são integrados, a impossibilidade de identificação de espécies ou grupo taxonômico e número de animais envolvidos nas epizootias, dentre outras fragilidades, trazem inúmeras dificuldades e atrasos para que a vigilância desempenhe seu papel com prontidão e economia.
A febre amarela foi o maior teste de efetividade do uso do SISS-Geo. Os resultados foram reconhecidos em prêmios nacionais e internacional. Os profissionais de saúde e outros órgãos relatam a facilidade do uso e a melhoria do trabalho. Gestores que implementaram em seus estados e municípios passaram a utilizá-los de forma sistêmica e a apoiar os treinamentos em outros estados.
Como o SISS-Geo é desenvolvido com participação das pessoas que estão no campo e dos gestores nos três níveis de governo e a sociedade, é continuamente atualizado com o objetivo de servir ao [Sistema Único de Saúde] SUS.