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23/08/2010

Pesquisadores explicam a atual importância do vírus vaccinia


Cepas do vírus vaccinia foram utilizadas na vacinação contra varíola. Hoje, cepas selvagens desse vírus têm sido identificadas em surtos, causando lesões em vacas leiteiras e nos trabalhadores rurais que cuidam desses animais. A circulação do vírus vaccinia em fazendas mineiras e fluminenses, bem como em amostras de leite e na Região Amazônica, tem sido investigada pelo grupo do Laboratório de Vírus do Departamento de Microbiologia do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Alguns dos trabalhos mais recentes do Laboratório foram apresentados durante o simpósio Erradicação da varíola após 30 anos: lições, legados e inovações, que ocorre na Fiocruz de 24 a 27 de agosto. Abaixo, o grupo – sob coordenação da pesquisadora Erna Kroon – adianta alguns resultados e comenta o impacto dos estudos na saúde pública.


Como podemos caracterizar o vírus vaccinia? Trata-se de um vírus que pertence à mesma família do vírus da varíola e que foi usado na composição da vacina contra a varíola?

O vírus vaccinia (VACV) é uma espécie diferente, porém estreitamente relacionado ao vírus da varíola (ambos pertencem à mesma família). Foi utilizado na campanha de erradicação da varíola como amostra vacinal, pois este vírus é capaz de gerar uma resposta imune protetora contra a infecção pelo vírus da varíola. Apesar de sua ampla utilização, não se sabe ao certo quando e onde este vírus teria surgido.


Embora tenha sido usado como vacina, o vaccinia pode causar doença em humanos e animais? Como é essa doença?

Atualmente, amostras selvagens de VACV estão circulando em partes da Ásia, onde é conhecido como o vírus buffalopox, e no Brasil, onde causa infecções acometendo gado bovino leiteiro e seres humanos. Estes surtos, coletivamente conhecidos como vaccinia bovina, se caracterizam pelo aparecimento de lesões vesiculares nas tetas e úbere das vacas leiteiras e, com menor freqüência, nos lábios e focinho de bezerros. Epidemiologicamente, a maioria dos casos da doença ocorre em pequenas propriedades rurais. Os ordenhadores, ao entrarem em contato com animais infectados, podem adquirir a doença, que se caracteriza pela formação de lesões vesiculares no sítio inicial de infecção, principalmente mãos, braços e face. Sintomas como febre, prostração, mialgia e linfoadenopatia são frequentemente relatados nos pacientes infectados e casos de infecções bacterianas secundárias são as complicações mais comuns. Também pode ocorrer transmissão do vírus de ordenhadores infectados a membros da família e contatos próximos.

 

Embora as campanhas de vacinação contra a varíola tenham sido interrompidas, após a erradicação da doença, o vírus vaccinia continua circulando na população? Por quê?

Provavelmente, os vírus isolados nos surtos circulariam na natureza em reservatórios naturais ainda desconhecidos e, de alguma forma, emergiriam nos casos de vaccinia bovina. Sendo assim, estes surtos não teriam uma relação direta com a vacinação ou com as amostras vacinais e representariam, sim, amostras selvagens que estão sendo introduzidas no rebanho bovino e entre humanos.


O fato de vocês terem encontrado anticorpos contra Orthopoxvírus no soro de indivíduos que não foram vacinados contra a varíola significa que essas pessoas entraram em contato com um vírus selvagem, isto é, diferente do vírus vacinal? Qual a implicação desse achado?

O achado de anticorpos em pacientes nascidos após a campanha de erradicação da varíola indicaria que, de alguma forma, estes indivíduos tiveram contato com amostras virais selvagens. Este achado é de grande relevância para saúde pública, pois indica que estes vírus estão amplamente distribuídos pelo território brasileiro.

 

Na Região Amazônica, no soro de quais animais selvagens vocês encontraram anticorpos contra Orthopoxvírus?

Dos 344 animais coletados em um resgate de fauna no Tocantins, duas espécies de primatas não humanos – macaco-prego (Cebus apella) e bugio (Allouata caraya) – e duas espécies de mamíferos – cutia (Dasyprocta sp.) e quati (Nasua nasua) – apresentavam anticorpos contra Orthopoxvírus, segundo a técnica de soroneutralização.


O fato de vocês terem encontrado anticorpos contra Orthopoxvírus no soro de animais selvagens significa que esses animais podem ser a origem da infecção que acomete os humanos na Região Amazônica? No Sudeste, a origem da infecção, em geral, tem sido associada ao gado bovino, correto?

A análise sorológica de pacientes do Acre mostrou que, provavelmente, estes estão entrando em contato com amostras selvagens de Orthopoxvírus. Porém, a incidência da infecção não é maior em populações que têm contato direto com bovinos, diferentemente dos surtos de vaccinia bovina no Sudeste do Brasil. Este achado nos leva a especular que, na Região Amazônica, a dinâmica de transmissão destes vírus é diferente e pode envolver estes animais silvestres, dado que, nesta região, atividades que levam ao contato direto entre animais silvestres e seres humanos são bastante comuns, tais como caça, extrativismo vegetal e mesmo o desmatamento para construção de pastagens.


O trabalho de vocês mostrou que, mesmo entre indivíduos que foram vacinados contra a varíola, é significativo o risco de haver sintomas devido à infecção pelo vírus vaccínia? Seria correto afirmar que esse risco é ainda maior entre os mais jovens, que não foram vacinados?

Como vem sendo comprovado em nossos estudos, existem dois grupos de indivíduos susceptíveis a infecções pelo vírus vaccínia. O primeiro grupo seria formado por pessoas que foram vacinadas contra a varíola há mais de 30 anos e que atualmente não apresentam mais a imunidade protetora adquirida pela vacinação. No segundo grupo, estaria a população jovem que não recebeu a vacina contra a varíola e consequentemente não apresenta nenhuma imunidade protetora contra infecções por vírus vaccínia e/ou por outras espécies pertencentes ao gênero Orthopoxvírus. Assim, podemos afirmar que o risco de infecções é grande não só entre os jovens não vacinados como também entre as pessoas vacinadas. E a preocupação deve ser ainda maior quando falamos de indivíduos imunodeprimidos, pois os casos podem se tornar mais graves, como é observado em infecções por poxvírus em outros países.


Diante desses achados, quais as recomendações?

A principal porta de entrada do vírus no organismo são lesões de continuidade na pele e a origem das infecções em humanos é o contato direto com o rebanho bovino leiteiro doente. Dessa forma, medidas preventivas devem ser adotadas para evitar essa via de infecção. Uma vez estabelecida a doença, entre as medidas de controle que devem ser adotadas, destaca-se a rigorosa inspeção dos animais e a separação dos animais doentes, para evitar a transmissão entre animais e minimizar os riscos de infecção para os humanos. A desinfecção das mãos do ordenhador entre vacas ordenhadas deve ser feita rigorosamente, além do incentivo ao uso de luvas pelos trabalhadores. A transmissão entre humanos deve ser controlada também evitando-se o contato direto de pessoas infectadas com sadias. Até agora nenhuma vacina foi desenvolvida para o controle da enfermidade. Uma ferramenta muito importante é o nível de informação de médicos, veterinários e proprietários, ou seja, o conhecimento da possibilidade de ocorrência da doença e suas características. Isto facilita o diagnóstico precoce dentro de uma propriedade ou área geográfica e possibilita a aplicação de medidas de prevenção. Depois que a doença já está instalada no rebanho, pode-se apenas minimizar as infecções secundárias e dar tratamento de suporte aos animais, bem como às pessoas infectadas. Muito importante também é a adoção de medidas informativas para os órgãos de vigilância sanitária e saúde pública.


Qual o significado, para a saúde pública, do risco de o leite estar infectado pelo vírus vaccinia?A partir dos resultados do trabalho, quais recomendações podem ser feitas?

Nosso estudo evidenciou que o VACV fica viável em leite experimentalmente inoculado com título viral conhecido, após pasteurização lenta (65 oC durante 30 minutos), armazenamento em freezer ou geladeira ou após a produção de queijo a partir de leite sem tratamento térmico prévio. Embora não haja relatos no Brasil de infecções associadas ao consumo de leite ou derivados provenientes de focos de vaccinia bovina, sabemos que o vírus buffalopox, uma amostra de VACV que acomete búfalos na Índia, foi identificado como sendo o agente etiológico de lesões na orofaringe de pessoas que consumiram leite cru. A possibilidade de veiculação de partículas virais viáveis de VACV no leite e queijo (massa e soro) chama a atenção para o potencial risco à saúde pública. Não conhecemos detalhes sobre a eliminação viral em animais naturalmente infectados, como a quantidade de vírus e tempo de eliminação. Também não sabemos se o vírus sobrevive à pasteurização HTST (High Temperature and Short Time) e ao tratamento UHT (Ultra High Temperature), o que achamos pouco provável. Assim, nossa recomendação, com as informações que temos até agora, é não ingerir leite cru nem utilizá-lo na produção de queijo.

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