07/05/2018
A revista Radis de número 188, de maio de 2018, aborda o problema da água como um direito, não um privilégio. Para a matéria de capa, a repórter Liseane Morosini entrevistou participantes do Fórum Alternativo Mundial da Água (Fama 2018) e do 8º Fórum Mundial das Águas (FMA), realizados em março, em Brasília. No primeiro, ribeirinhos, indígenas, pescadores, marisqueiros, quilombolas, ativistas, ambientalistas, acadêmicos, estudantes, do Brasil e de fora dele bradavam que a água é de todos, é um bem comum, não uma mercadoria. No outro, estavam o que eles identificavam como um grande balcão de negócios, no chamado fórum das corporações que discutia tecnologias e modelos que, na prática, visam reduzir direitos, controlar o acesso para capturar e comercializar a água no mundo. Juntos, lançaram uma carta em que denunciam as corporações que querem exercer o controle da água por meio da privatização, mercantilização e titularização, e alertam que essas empresas usam de estratégias que vão desde “violência direta até formas de captura corporativa de governos, parlamentos, judiciários, agências reguladoras e demais estruturas jurídico-institucionais para atuação em favor dos interesses do capital”.
Segundo os participantes, diz a Radis, o resultado é a invasão, apropriação e o controle político e econômico dos territórios, das nascentes, rios e reservatórios, para atender os interesses do agronegócio, hidronegócio, indústria extrativa, mineração, especulação imobiliária e geração de energia hidroelétrica. Denunciam, ainda, que o mercado de bebida deseja controlar os aquíferos e o abastecimento de água e esgotamento sanitário.
Durante o Fórum, segundo a reportagem, foi também lançado uma carta em que lideranças de povos originários e de populações e comunidades tradicionais denunciam as práticas indevidas que levam à contaminação, como os rejeitos tóxicos das atividades de mineração, o derramamento de esgotos não tratados, o desmatamento e a criação de gado impetradas por fazendeiros, empresários, poderes públicos e o capital. “Para nós, sem terra não há água, sem água não há semente, que é fonte da vida”, salientam os indígenas.
Presente ao Fama, Biko Rodrigues, da Coordenação Nacional de Quilombolas (Conaq), advoga que a disputa pela água caminha juntamente com a luta pela demarcação dos territórios tradicionais dos quilombolas. Ele denuncia, de acordo com a revista, que a apropriação dos recursos hídricos por parte dos fazendeiros impede que os quilombolas acessem esse recurso. “Precisamos que nossos territórios sejam regularizados para cuidar e preservar a água, para sermos guardiões da biodiversidade e de toda essa riqueza que temos no país”, afirmou à Radis. Números da Conaq indicam que mais de seis mil comunidades aguardam o reconhecimento das suas terras no Brasil, em um total de 16 milhões de pessoas.
Já o líder indígena Douglas Krenak contou à reportagem da revista que seu povo teve o curso da vida alterado pelo maior desastre ambiental do país: o rompimento da barragem de Fundão, operada pela Samarco, em novembro de 2015. Para Douglas, é um equívoco falar que houve um acidente. “Houve um crime. “Meu povo não pode mais exercer a vida cotidiana. Há dois anos que não comemos peixe, não batizamos nem realizamos nossos rituais sagrados. Fomos impedidos de viver”, declarou.
O aquífero de Alter do Chão, como é conhecido o Sistema Aquífero Grande Amazônia (Saga), é o maior reservatório de água potável do mundo. Esse lago gigante que fica no subsolo do Amazonas, Pará e Amapá é uma reserva estratégica para o país, e também está sendo ameaçado pela exploração e contaminação de suas águas. Luciana Cordeiro, professora de Direito da Universidade de Campinas (Unicamp), disse que a área é de grande interesse comercial e há riscos diretos que podem impactar na qualidade da água. “Alter do Chão pode se tornar uma área de interesse para a especulação imobiliária, com a construção de grandes resorts, e o estabelecimento de indústrias envasadoras, que visam exportar água para outros países. Isso é um perigo”, indicou.
Luciana contou à Radis que, num evento recente, um pesquisador sugeriu a transferência de indústrias paulistas para a região Norte, com o intuito de superar a crise de água que afeta o estado. “É um absurdo. Alter não pode receber indústrias poluentes. Esse aquífero tem formação rochosa e é bem poroso. Nós precisamos saber qual é essa vulnerabilidade antes de lotear toda essa região”.
O Cerrado é outro berço das águas que vem sendo sistematicamente agredido pela consolidação do agronegócio. Para fazer frente à devastação e mostrar a importância desse bioma, em 2016 foi lançada a Campanha em Defesa do Cerrado. A coordenadora do Projeto de Articulação do Cerrado, Isolete Wichinieski, disse à Radis que o agronegócio e o capital suplantaram o direito dos povos e comunidades. “O Cerrado é colocado como o celeiro do mundo e facilita o processo de expansão do capital no campo. Parece que ali não tem gente. Precisamos mostrar que o Cerrado tem uma identidade, uma cultura, um jeito de produzir, um modo de vida diferente. E há uma forte relação dos povos tradicionais e comunidades com seu território. Eles é que são os guardiões desse bioma”, declarou, em conversa com a reportagem.
De acordo com Isolete, o Cerrado ocupa 36% do território brasileiro entre áreas de transição e contínuas. O avanço do agronegócio, diz, tem um impacto grande na gestão do território. “Junto com ele vem a grilagem das terras e a ação do governo, que não regulariza essas terras e tenta fazer uma regularização individual, diminuindo a força do coletivo”.
A Radis alerta que as diferentes visões sobre o uso e a gestão da água vêm acirrando os conflitos no campo. De acordo com a pesquisa Conflitos no Campo Brasil 2016, realizada pela CPT, o número de embates por água no país cresceu 150% entre 2011 e 2016, saltando de 69 para 172. Aumentou também o número de pessoas envolvidas nesses conflitos. Se, em 2007, foram 164 mil, nove anos depois, em 2016, esse total foi de 222 mil, um acréscimo de 35,8%. O relatório mostra que, entre 2002 e 2010, havia oscilação. De 2011 para cá, aumento. Eram 28 mil famílias envolvidas em 69 conflitos, nesse ano. O número em 2016 foi de 44 mil famílias, envolvidas em 172 conflitos. Segundo a CPT, a mineração responde por mais da metade dos problemas (51,7%) e as hidrelétricas, por 23,2%.
A revista também entrevistou o italiano Renato Di Nicola, do European Water Movement e do Foro Italiano Movimento Acqua. Para ele, quem controla a água, também nos controla. Contrário à privatização, ele considera que por trás da luta pela água há uma disputa por visões de mundo. “Eles olham a água e veem dinheiro. E quando privatizam a água ou qualquer outro serviço, nos privam de decidir”. Um dos coordenadores do Fórum Alternativo Mundial da Água (Fama), ele traz na bagagem a luta contra a privatização desse recurso na Itália, e é enfático ao defender a água como um instrumento democrático. Em entrevista à Radis, ele criticou o interesse financeiro de multinacionais e defendeu estratégias mais incisivas para enfrentar a mercantilização: “Temos que mudar a nossa linguagem. Um desastre ambiental é um crime ambiental. Quem leva à morte milhões de outros indivíduos que não têm acesso à agua, não se equivoca, é criminoso”.