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03/10/2019

Radis de outubro debate projeto democrático de saúde

Luiz Felipe Stevanim (Revista Radis)


Luiza ainda não era nascida quando o sanitarista Sergio Arouca proferiu o célebre discurso na 8ª Conferência Nacional de Saúde (CNS), em 1986, que sintetizava a ideia de que “democracia é saúde”. O país vivia o contexto de fim da ditadura militar, implantada com o golpe de 1964, e a fala do então presidente da Fiocruz se tornou um símbolo da luta pela criação do Sistema Único de Saúde (SUS) e também em defesa da democracia. Trinta e três anos depois da 8ª, a estudante Luiza Melo, nascida na cidade de Bezerros, no Agreste pernambucano, participa de sua primeira Conferência Nacional de Saúde, a 16ª, aos 22 anos, e questiona os limites da também jovem democracia brasileira, que não enfrentou as desigualdades sociais e a concentração de poder e vivencia hoje uma série de riscos colocados à sua sobrevivência. “Democracia para quem? Saúde para quem?”, pergunta Luiza.

Nas aspirações da estudante, há muito em comum com a fala de Arouca. Enquanto o sanitarista proclamava que saúde é “um bem-estar social” que vai muito além de não estar doente, Luiza acredita que a democracia, assim como a saúde, garante o direito à existência com qualidade de vida. “Democracia e saúde têm algo em comum: ambas são sobre o direito de existir de um povo”, assinala. 

Porém, se os direitos constam apenas no papel, tanto a democracia brasileira quanto o SUS permanecem uma obra inacabada — como uma casa em que a construção não corresponde ao projeto que estava na planta. “Não é suficiente dizer que a gente defende uma saúde de qualidade, sem pensar em que tipo de saúde a gente quer. Saúde e democracia podem ser também instrumentos de perpetuação das desigualdades e da lógica de exclusão vigente na sociedade”, considera.

O que impediu que a obra se completasse? Estudante da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e integrante da Executiva Nacional de Estudantes de Terapia Ocupacional (ExNETO), Luiza tem um palpite: sem o enfrentamento das desigualdades, não é possível consolidar uma democracia plena. Delegada representante dos usuários na 16ª CNS, em Brasília, entre 3 e 7 de agosto — cujo tema era Democracia e Saúde —, ela aponta que a visão de saúde como mercadoria prejudica sua garantia como direito, mesmo em um país formalmente democrático como o Brasil. “A conjuntura mostra que o setor privado tem seus interesses tanto na saúde quanto na educação. A gente tem que escolher: queremos uma saúde e uma democracia privatistas ou vamos usar as duas ferramentas para construir outro modelo de sociedade?”, pontua. É como perguntar: a casa é para todos ou só para quem pode pagar? Nos corredores da 16ª, enquanto participava dos debates sobre os rumos da saúde pública nos próximos quatro anos, Luiza vai além, ao destacar que o SUS é uma bandeira fundamental, mas precisa ser compreendido frente aos interesses que querem seu desmonte ou privatização: “Adoecer vai ser bom para alguém. A quem interessa o SUS não funcionar? Se o SUS vai mal, quem vai bem?”, questiona.

Assassinatos de ambientalistas e defensores de direitos humanos, a crescente postura autoritária dos governos, dificuldades para o acesso aos serviços públicos e uma agenda de reformas que busca restringir os direitos da população são alguns fatores que provocam Virgínia Fontes, historiadora e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), a questionar: “Estamos vivendo uma democracia?”. Ela compara o contexto da 8ª CNS, em 1986, de lutas e aspirações que levaram à redemocratização do país, com o atual, em que “a Constituição vem sendo cotidianamente demolida”, como destacou. “Em 86, vivíamos o ocaso de uma ditadura. Em 2019, corremos o risco de viver o empalidecimento da democracia”, enfatizou durante a conferência magna que abriu a 16ª CNS. Para a historiadora, a 16ª — chamada de 8ª + 8 — deveria representar a “democracia duplicada”, com a expansão dos direitos e do exercício da cidadania, mas ocorre em um contexto de “democracia dividida”.

Portanto, se há 30 anos o caminho era refundar a democracia brasileira, hoje o desafio colocado é impedir que a obra — ainda inconclusa — seja demolida. “Não há democracia onde os direitos não são minimamente assegurados. É preciso qualificar de que democracia estamos falando”, aponta Ary Miranda, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz). Ele considera que questões como o desemprego em massa, a violência urbana, a pobreza e degradação das condições de vida da população e os assassinatos decorrentes de conflitos no campo tornam nublado o horizonte democrático brasileiro.

“A luta pela democracia não é só por liberdade de expressão e participação. A democracia também precisa garantir direitos sociais e temos que lutar politicamente por uma democracia que contemple esses elementos”, define. Diante de pressões cada vez mais frequentes que ameaçam a Constituição de 1988, Radis ouviu diferentes opiniões — dentro e fora da 16ª — para entender a mesma inquietação de Luiza: afinal, para onde caminha a democracia brasileira?

Continue a leitura da matéria de capa de outubro no site da Radis.

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