23/10/2020
Luiz Felipe Stevanim (Revista Radis)
Algo estava errado no mundo de Michele Croci. Ela parecia bem no emprego e com a família, até que ouviu a frase de uma colega de trabalho: “Cadê sua alegria? Você não costumava ser assim...” Aquele foi para ela um estalo de que algo não ia tão bem quanto imaginava. Ao se olhar no espelho, era como se deixasse de ver as cores do mundo. Estavam de volta os dias difíceis, depois de um tempo em que se habituou a sorrir com a mãe e a irmã, a brincar com seu cachorro Thóbby ou a acordar para mais um dia de trabalho. A dor tornava a invadi-la, um sentimento que não sabia de onde vinha. “É uma falta de esperança total. Parece que o mundo deixa de ser colorido e passa a ser somente cinza e preto”, conta. O peso de seus pensamentos, recorrentes e pessimistas, chegava a doer fisicamente, como se o sofrimento fosse palpável ou sensorial.
Foi em 2017 que viveu a fase mais difícil, quando sobreveio o que define como “vazio”, ao deixar de sentir prazer pela vida, um sentimento difícil de descrever, mas que apertava a alma. “Eu não esboçava nenhuma reação e estava começando a parar de comer”, relata. Retornava a sensação doída que ela conheceu ainda adolescente, mas que então não havia sido capaz de definir. “Na adolescência, eu sabia que algo estava errado, mas não tinha forças o suficiente para pedir ajuda”, relembra. Ao perceber que algo pesava novamente dentro dela, duas motivações levaram-na a procurar apoio. “Em primeiro lugar, eu mesma querer melhorar e sair desse quadro, perceber que não acontece só comigo, que existe tratamento. Em segundo lugar, foi a questão de eu querer estar aqui pela minha família”, ressalta.
Então veio o diagnóstico para o que era, até aquele momento, intraduzível: transtorno afetivo bipolar, um tipo de depressão que se caracteriza pela alternância de humor. E dali a procura para que sua dor fosse ouvida e o mundo recuperasse as cores. Hoje com 27 anos e moradora de Guarulhos, em São Paulo, ela divide o tempo entre o trabalho com atendimento online, sua paixão pela leitura — que vai de livros de suspense à poesia — e o voluntariado na Associação Brasileira de Familiares, Amigos e Portadores de Transtornos Afetivos (Abrata), onde compartilha experiências com outras pessoas diagnosticadas com depressão e transtorno bipolar. “Escutar as histórias das pessoas me ajuda muito a complementar a minha própria. Isso é fascinante, ver que a gente tocou o outro e ajudou. Às vezes só de escutar já ajuda”, pontua.
Angústia, tristeza, melancolia, apatia, tédio são nomes que se referem a tonalidades do sofrimento psíquico. Contudo, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a depressão é um transtorno mental frequente que acomete mais de 300 milhões de pessoas em todo o mundo. Envolta em estigmas e preconceitos que a associam à “preguiça” ou à “falta de vontade”, esse estado da alma pode se tornar uma condição crítica de saúde, ainda segundo a organização, e alterar a rotina no trabalho, na escola ou no meio familiar. A prevalência de depressão ao longo da vida no Brasil está em torno de 15,5%, de acordo com dados do Ministério da Saúde. Na avaliação da OMS, essa é a principal causa de incapacidade em todo o mundo e, no pior dos casos, pode levar ao suicídio. Mas até que ponto o sofrimento é parte da experiência humana e quando ele passa a ser uma condição preocupante para a saúde?
Michele compreendeu que precisava agir para encontrar novamente as cores do mundo. Ela ansiava por acolhimento e por partilhar o que sentia com quem estivesse aberto para ouvir sem julgamentos. “Durante a fase depressiva, somos assolados por esse vazio que muitas vezes não é real. Ter alguém que escute nos mostra que não estamos sozinhos e que merecemos atenção e cuidado”, diz. Para ela, o apoio e a presença familiar são tintas essenciais para colorir e superar os dias cinzas. “Eu, minha mãe e meus irmãos somos muito unidos. Somente o fato de eu pensar em não estar presente em algum momento na vida deles já foi o suficiente para transformar em combustível para me cuidar”, comenta.
O percurso para superar a depressão também levou Michele ao uso de medicamentos antidepressivos, o que exigiu esforços para “driblar” ou amenizar os efeitos colaterais, como ela conta. “O medicamento atual que estou tomando provoca queda de cabelo. Conversei com o médico e realmente estava me incomodando. Aí eu tomo suplemento capilar, que evita e diminui a queda”, explica. Ela considera importante a interação entre o médico psiquiatra e o paciente para definir a melhor estratégia de tratamento. No entanto, segundo ela, de nada adianta se não houver espaços de escuta, não somente na terapia, mas também em grupos de apoio, além de familiares e amigos.
“Saber que não estamos sozinhos, que não acontece só conosco é libertador. Quanto mais a gente fala, parece que a dor diminui”, descreve. Hoje ela almeja cursar psicologia, a partir do próximo ano, tamanho é o fascínio em estudar o tema e compreender os matizes do sofrimento psíquico. A troca de experiências nas rodas de conversas promovidas pela Abrata também foram fundamentais para vencer estigmas e cobranças — das outras pessoas, mas principalmente de si mesma. “Quanto mais a gente fala sobre a dor da alma, menos estigma a gente tem. Quando a gente verbaliza e tem uma pessoa para escutar, a gente se sente acolhido e pertencente a alguma coisa”, afirma.
Tonalidades do nosso tempo
Sísifo é um personagem da mitologia grega condenado pelos deuses a repetir a mesma tarefa por toda a eternidade: ele rola uma grande pedra de mármore com suas mãos até o alto de uma montanha, porém quando chega ao topo, a pedra cai e retorna ao início anulando todo o esforço. O mito de Sísifo pode ajudar a entender como a sociedade contemporânea gera condições de sofrimento psíquico que provocam “vazios” na alma tão pesados quanto a pedra de mármore do personagem grego. Para Ana Maria Feijoo, professora do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), mais importante do que chegar a um diagnóstico fechado de depressão é entender as singularidades que geraram aquele sofrimento. “Na maioria das vezes, o que aparece é um modo de se articular com o mundo. Em um mundo que tem tantas exigências, há a produção de um cansaço, uma tristeza, uma sensação de que nunca se realiza nada. Isso pra mim se chama tédio”, avalia.
Segundo a professora, especialista em luto e suicídio e coordenadora do Laboratório de Fenomenologia e Estudos em Psicologia da Existência (Lafepe/Uerj), existem duas grandes tendências para pensar a depressão. De um lado, está uma vertente, chamada por ela de “biologizante”, que coloca a depressão como doença do corpo — se a pessoa tem determinado número de sintomas estabelecidos pelos manuais de psiquiatria, é fechado o diagnóstico e inicia-se o tratamento. Porém, existe outra abordagem que “se demora na compreensão da situação singular daquela pessoa”: as condições de vida, a história pessoal, as experiências e até as determinações sociais são importantes para entender o que produz o sofrimento. “Então eu saio dessa tendência biologizante — não nego, mas me desvio — de modo a poder pensar como o mundo de hoje acaba facilitando que comportamentos depressivos aconteçam, que eu chamo de tédio. Eu costumo dizer que a tristeza e o tédio são tonalidades afetivas do nosso tempo”, reflete.
As pressões do presente para que se produza de maneira incessante e sem medida, assim como os ideais inalcançáveis de felicidade, podem contribuir para gerar experiências de sofrimento. Ana cita a expressão “sociedade do cansaço” — cunhada pelo filósofo sul-coreano Byung-Chul Han — para se referir às queixas que chegam aos consultórios e recebem diagnóstico de transtornos. Como no mito grego de Sísifo, é a sensação de produzir, produzir, produzir e não chegar a lugar algum. “Se você não realiza, isso estafa, cansa, entristece”, explica. Enquanto o mundo pede pressa, não sobra espaço para cuidados com a própria saúde mental nem para escutar as angústias do outro. “O ser humano moderno é muito apressado. Nunca está onde está. E essa pressa o deixa cego e surdo. Eu diria que até sem olfato e degustação”, analisa.
O sofrimento é parte da experiência humana? Para Ana, que é autora do livro Suicídio: entre o viver e o morrer, é preciso lembrar que a vida não envolve só prazer. “A vida implica alegria e dor. Uma coisa não exclui a outra. Aliás, só temos a alegria, porque existe dor”, pontua. Para a pesquisadora, o mundo diz que precisamos desempenhar inúmeros papéis: é preciso ser bem-sucedido, ter um casamento perfeito, ter muitos filhos ou poucos filhos. Porém, mesmo que queira, ninguém é feliz o tempo todo. “Quando a pessoa tem dor ou é infeliz por algum motivo, ela mesma se diagnostica com alguma patologia, com algum tipo de frustração ou inferioridade. Ela olha para o quintal do vizinho e acha que as flores são mais bonitas, porque ela só vê a aparência”, reflete.
O tempo “apressado” que vivemos também não deixa espaço para ouvir o outro — quando a escuta pode ser um caminho essencial para superar sentimentos comuns na depressão. Ana ressalta o papel dos espaços informais de partilha dos sentimentos, entre amigos, família e pessoas próximas ou em grupos de apoio. “Escutar é não se preocupar com o que você tem a dizer, é recuar para poder ouvir. Normalmente quando alguém diz ‘estou triste’, nós respondemos: ‘Não fique assim. A vida é bela.’ Nada disso. Precisamos ser todo escuta ao outro”, assinala.
Ao se dispor a ouvir, é possível perceber que as cores estavam apenas ocultas e não haviam desaparecido para sempre. “É isso que a clínica faz: escuta para poder ver que aquilo que a pessoa traz não é tristeza. É projeto de vida, é incômodo”, ressalta. Sem negar a importância da psiquiatria e da medicina, Ana alerta para os cuidados com o uso e o abuso de antidepressivos; e chama a atenção para a existência de outros caminhos para dialogar com a dor da alma. “O tédio não precisa ser medicado, ele precisa ser ouvido. Precisamos saber o que ele tem a nos dizer. Se eu medico, ele não vai me dizer mais nada, vai ficar anestesiado”. Dar voz ao tédio, na visão de Ana Maria Feijoo, é abrir possibilidade para que a pessoa possa se articular de outro modo no mundo, para além do modo do cansaço.
“Na medida que eu puxo esse fiozinho que está todo escondido, a pessoa pode descobrir outro modo de se articular com as determinações hegemônicas do nosso tempo”, explica. Ouvir também é uma atitude que ajuda a “desacelerar” o mundo. “Sempre estamos com tanta pressa que não temos escuta à vida nem escuta ao outro”, aponta. Como não ser apressado em uma sociedade que exige tanto de nós? “Precisamos parar com essa ideia de que é preciso produzir, produzir, produzir. Deixar de tomar o ser humano como máquina e a existência a partir dos seus mecanismos”, completa.
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