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16/07/2020

Radis aborda sobrevivência e luto na pandemia de Covid-19

Adriano De Lavor e Ana Cláudia Peres (Revista Radis)


O guarda-roupa está intocado e a vida, pelo avesso. Edimere Amaral ainda não consegue olhar os vestidos da mãe e só aos poucos vem aprendendo a caminhar em um mundo sem ela — dona Iraildes, “o centro de tudo”, como diz à Radis. Ia fazer 88 anos no final de maio. Era uma pessoa extremamente ativa. Cuidava caprichosamente da casa e de uma irmã que morava com ela. Os dois filhos, hoje adultos e casados, sempre puderam lhe pedir ajuda. Meio-dia em ponto, de segunda a sexta-feira, posicionava-se em frente ao portão até Clara chegar da escola — avó e neta passavam boa parte da tarde juntas. “Eu tenho 48 anos e ainda me balizava pelas orientações de minha mãe. Ela era o meu braço direito”, conta, emocionada, a filha Edimere, ou Mere, como é conhecida pelos amigos.

Entre o momento que dona Iraildes Amaral deu entrada no hospital com sintomas de Covid-19 e a hora do óbito, passaram-se pouco mais de 24 horas. Tudo aconteceu entre 3 e 4 de maio, de repente. Ela tinha pressão alta devidamente medicada; diabetes controlada com alimentação. “Só ia a médicos para consultas de rotina”, destaca Mere, que durante a pandemia, exercendo o trabalho remoto, mudara-se de vez para a casa da mãe com quem pretendia cumprir a quarentena em São João de Meriti, região metropolitana do Rio de Janeiro. Dona Iraildes andou abatida naquela semana, mas diariamente a filha lhe aferia a pressão. Nada parecia alterado. Em um sábado à noite, a senhora forte que nunca se queixava de nada e “sempre detestou hospitais” reclamou de dores de cabeça e no estômago. Dormiu mal, com enjoos. Acordou tossindo. No hospital, antes mesmo do resultado da tomografia, o médico constatou estar diante de um caso de suspeita de Covid-19 que necessitava de internação imediata.

Mere é gerente administrativa e atua no Sindicato dos Trabalhadores da Fundação Oswaldo Cruz (Asfoc-SN). Há pelo menos 26 anos na Fiocruz, conhece de perto o be-a-bá da saúde pública. Desde que um vírus desconhecido pela ciência começou a causar grave infecção pulmonar matando milhares na cidade de Wuhan, na China, a partir de dezembro, alastrando-se rapidamente pelo globo e deixando países como Itália e França em polvorosa, ela temia pelo que poderia acontecer quando os primeiros casos fossem detectados no Brasil. “Isso estava em nossas pautas. Era uma preocupação diária. Me perguntava como nosso país responderia a uma pandemia como essa”.

Nem nos piores pesadelos, no entanto, imaginou que sua vida pudesse ser afetada tão diretamente. Vinham cumprindo rigorosamente o isolamento social, mas na roleta russa da Covid-19, aconteceu com a sua família. “O Brasil e o mundo estão vivenciando uma catástrofe. E minha família foi atingida em cheio”. Ela perdeu ainda um meio-sobrinho — o filho da esposa de seu irmão tinha apenas 21 anos. Além disso o irmão de Mere e ela própria testaram positivo para o vírus. Mere chegou a ficar internada por cinco dias com cerca de 50% do pulmão comprometido.

No início de junho, autoridades sanitárias, pesquisadores e entidades ligadas à saúde criticaram abertamente o Ministério da Saúde pelo atraso na divulgação dos números e pela omissão nos dados oficiais do novo coronavírus no Brasil. O choque entre as informações do Ministério e aquelas divulgados pelas secretarias estaduais acabou gerando a criação de um consórcio de veículos de imprensa — iniciativa que veio se somar a outras que já fazem contagens independentes, a exemplo do Sistema de Informação para Monitoramento da Pandemia do Coronavírus (MonitoraCovid-19) da Fiocruz — cujo objetivo é informar de maneira mais transparente sobre a evolução da pandemia no país. Segundo o consórcio, o Brasil atingiu mais de um milhão e quatrocentos mil casos e mais de 60 mil mortos por Covid-19 quando iniciou o mês seguinte (1º/7).

Dona Iraildes é mais do que um número. Nas lembranças da filha, aparece dançando ao som dos “Bandolins”, de Oswaldo Montenegro, ou assistindo a “O segredo da libélula”, que ela via quantas vezes o filme passasse na TV. Ainda agora, enquanto Mere atende à ligação de Radis, sentada na cama da mãe, ela se ressente daqueles que fazem pouco caso da pandemia. Quando escuta alguém minimizar a gravidade do que está acontecendo no Brasil, diz que isso lhe dói “como um punhal”. “Acho um desrespeito. Você não precisa passar por esse sofrimento para sentir a dor do outro”, reflete. “A gente não está vivendo uma situação natural. A minha mãe foi vítima de uma tragédia”.

Luto coletivo

“A morte é como o umbigo: o quanto nela existe é a sua cicatriz, a lembrança de uma anterior existência”. A frase poética de Mia Couto foi citada por Maria Helena Franco, em entrevista à Radis (ver entrevista aqui). A psicóloga, uma das maiores referências em luto no país, recorre ao escritor moçambicano para tentar explicar o inexplicável: o que essas perdas repentinas e trágicas, que têm ocorrido durante a pandemia, podem nos dizer sobre vida e finitude? Na metáfora de Mia Couto, o luto pode ser essa cicatriz. “Ela está ali para lembrar que a gente viveu aquela dor, aquela ruptura”, diz a coordenadora do Laboratório de Estudos e Intervenções sobre o Luto (Lelu/PUC-SP). “Mas essa cicatriz não tem que doer para sempre”. Segundo a psicóloga, o luto pela perda de uma pessoa amada é a experiência mais universal e, ao mesmo tempo, mais particular, desorganizadora e assustadora que o ser humano pode viver. “Mas ele existe para nos lembrar que, ainda que a vida não seja mais como costumava ser, o vínculo com aqueles que perdemos permanece em um novo jeito de viver e em cada recomeço”.

Diante da massificação das perdas por Covid-19, em que cada luto é acrescido de mais mortes e de mais casos de pessoas conhecidas, Maria Helena tem se indagado se está se desenhando uma nova forma de luto. “Porque tudo o que vem com esse tipo de morte compõe um jeito muito específico de viver a experiência do luto”. O distanciamento do doente, a falta de acompanhamento em seus últimos dias de hospital, as restrições a velórios e enterros, a ausência dos rituais de despedidas e o cumprimento a todas as medidas sanitárias necessárias ao momento acabam por alterar o processo de construção de sentidos em torno da compreensão da morte de um parente ou amigo próximo. Para a psicóloga, vai haver um período de luto coletivo denso. “Não sei medir isso. Mas posso dizer de um sofrimento que talvez vá durar mais que a pandemia, porque necessita de um tempo de elaboração maior”.

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Confira também a edição de julho da revista na íntegra

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