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14/11/2012

Reabilitação psicossocial dos ‘loucos’ em situação de rua através da cidadania terapêutica

Fernanda Marques


Os ‘loucos’ em situação de rua não escolheram viver nessa condição. Não estão vinculados a Centros de Atenção Psicossocial (Caps), a Unidades Básicas de Saúde (UBS) nem às Equipes de Saúde da Família (ESF). Não se conhece a história de vida desses indivíduos. E o único vínculo que eles mantêm é com a população do bairro por onde vagueiam. Os moradores do bairro, então, mesmo sem se darem conta disso, adquirem um saber sobre aqueles ‘loucos’. Investigar os ‘olhares’ desses moradores, para compreender o que pensem, sentem, dizem e fazem em relação aos ‘loucos’, é o objetivo do livro O Louco, a Rua, a Comunidade: as relações da cidade com a loucura em situação de rua, de Angela Maria Pagot, com o selo da Editora Fiocruz. Em seu estudo, embasado na teoria das representações sociais, a autora defende que, apesar das dificuldades e até dos preconceitos, os moradores do bairro têm potencial para atuarem como agentes de saúde mental. “Pois enquanto o ‘louco’ permanecer na rua pertencerá não apenas ao Estado, mas também às pessoas do bairro onde se encontra”, destaca.

 

 

 

O trabalho no sentido de que os ‘loucos’ em situação de rua retornem à condição de sujeitos e cidadãos é bastante delicado, lento e gradual. Angela é psicóloga em um Caps de Porto Alegre e, há mais de dez anos, atende a essa população. De acordo com a autora, para aperfeiçoar o atendimento, é preciso conhecer os pensamentos e atitudes da comunidade em relação aos ‘loucos’. Afinal, é a comunidade que, cotidianamente, lida com esses ‘loucos’ e, se ela não estiver sensibilizada e mobilizada, a discriminação social os manterá excluídos, tanto da cidadania como da organização psíquica. E, mais do que isso, sem a comunidade, correm risco de vida. “A interface do ‘louco’ em situação de rua com a comunidade, por intermédio de olhares e ações, é produtora de saúde mental do primeiro e também a única forma possível de manutenção de um elo com a sociedade”, avalia Angela.     

Por isso, para sua tese de doutorado, defendida no Programa de Saúde Mental Comunitária da Universidade de Lanús (Buenos Aires), a psicóloga fez uma pesquisa de campo na qual coletou as impressões dos porto-alegrenses em relação aos ‘loucos’ que viviam nas praças e ruas da capital gaúcha, na porta dos comércios e residências. A partir dos dados obtidos, a autora construiu ‘mapas’ das representações sociais. “Ao apreciar esta obra, cada leitor irá certamente se identificar em algum dos mapas representativos criados pela autora”, afirma o doutor em psicologia social Pedrinho A. Guareschi, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que assina o prefácio do livro.

Os mapas traçados por Angela apresentam as múltiplas facetas de uma sociedade. “Os resultados revelam uma comunidade com diversas faces, ao mesmo tempo individualista, participativa, impotente e ambígua, capaz de diferentes olhares e ações ou de nenhuma ação em relação a essa população, em diferentes momentos”, resume a pesquisadora. Embora tenha identificado individualismo, conflitos, sentimentos de impotência e mecanismos de defesa nas falas dos entrevistados, Angela também verificou a oportunidade de engajar os moradores na reabilitação psicossocial dos ‘loucos’ em situação de rua. Por isso, no livro, a autora propõe, “além do fortalecimento das políticas e rede de serviços da saúde e da assistência governamentais já existentes, a criação e o desenvolvimento de um trabalho em parceria com a comunidade, de forma a possibilitar e assessorar o suporte do Estado”. A autora ratifica, assim, a Carta de Intenções para a Saúde Mental, produzida em 2002, durante um congresso internacional em Milão, um documento que defende a “cidadania terapêutica”.

Publicado em 14/11/2012.

 

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