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07/12/2007

Relações entre os sistemas de saúde nas fronteiras do Mercosul sofrem por falta de articulação

Fernanda Marques


Em tempo de acirrado debate sobre a adesão da Venezuela ao Mercosul, uma pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp) da Fiocruz confirma: embora os objetivos motivadores de processos de integração entre países sejam econômicos, essas iniciativas repercutem nas políticas e sistemas de saúde. A sanitarista Luisa Guimarães Queiroz, em sua tese de doutorado, analisou questões de saúde no âmbito do Mercosul e da União Européia. “Pode-se considerar que a histórica integração no continente europeu manda mensagens para o jovem Mercosul, criado 40 anos depois, de que mercado e saúde devem articular metas para que os ganhos de um repercutam sobre a outra”, afirma Luisa, que foi orientada pela pesquisadora Ligia Giovanella. Em entrevista à Agência Fiocruz de Notícias, a pesquisadora comenta os sistemas de saúde nas cidades de países-membros do Mercosul que fazem fronteira com o Brasil, analisa as políticas para o setor que existem atualmente e aborda a implantação de Colegiados de Gestão Regional nesses municípios.


Como são o perfil sócio-demográfico e a rede do SUS nos municípios brasileiros que fazem fronteira com países do Mercosul?

Luisa Guimarães Queiroz:
Ainda que os municípios fronteiriços do Mercosul apresentem semelhanças no perfil, não conformam, no conjunto de suas características, um território único. Os 69 municípios brasileiros fronteiriços com os países fundadores do Mercosul somam um quinto da fronteira continental do Brasil e reúnem cerca de 1% da população brasileira. São, em geral, municípios pequenos: apenas seis têm mais de 50 mil habitantes, 25 têm entre 10 mil e 50 mil e 38 têm até 10 mil habitantes. Além disso, 81% apresentam Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) até 0,800 (de médio a baixo) e, daqueles com IDH superior, a maior parte se encontra na fronteira com a Argentina. Predominam estabelecimentos de atenção primária e unidades hospitalares com baixa incorporação tecnológica: a rede de saúde pública fronteiriça alcança resolutividade limitada e é dependente de outras redes para garantir a integralidade.


E como descreve os sistemas de saúde nas cidades estrangeiras vizinhas?

Luisa:
Analisei os sistemas de saúde de cidades estrangeiras a partir das percepções dos secretários de Saúde de cinco municípios brasileiros fronteiriços. Em relação aos sistemas de saúde das cidades vizinhas, os aspectos avaliados pelos secretários brasileiros de forma mais negativa são a quantidade e o tipo de recursos humanos e a garantia de referências para ações de saúde de maior complexidade. Eles tendem a considerar o próprio sistema de saúde de forma mais positiva. Os recursos financeiros gastos em saúde, em geral, são avaliados como bom em ambos os lados da fronteira.


No que se refere aos sistemas de saúde, existem desigualdades entre o Brasil e seus vizinhos nas regiões de fronteira?

Luisa:
Existem diferenças estruturais entre os sistemas de saúde dos países do Mercosul.  Aliás, tais diferenças são esperadas considerando-se que os sistemas de saúde fazem parte de políticas públicas que resultam de lutas sociais e, portanto, assumem desenhos organizacionais vinculados a valores e características de cada sociedade. Além disso, o financiamento e o acesso aos serviços de saúde são distintos ao se vincularem às regras específicas de seguridade social.


No âmbito da saúde, como são as relações entre os municípios brasileiros e as cidades estrangeiras vizinhas?

Luisa:
Minha pesquisa evidencia que a busca por ações de saúde do outro lado da fronteira é uma realidade no Mercosul. Nas cidades-gêmeas (núcleos urbanos distintos, simetricamente dispostos, pertencentes a países diferentes), foram analisadas as relações formais e informais entre os sistemas públicos de saúde e observa-se que estas são ainda incipientes. Prevalecem contatos informais entre profissionais para encaminhar pacientes e trocas de informações epidemiológicas. São raras as ações conjuntas para o controle de vetores de doenças. Todavia, sempre existe alguma iniciativa de saúde que busca envolver a cidade vizinha estrangeira. As mais comuns são seminários, reuniões, campanhas, capacitação, espaços para a participação comunitária etc. Apesar de limitadas, tais iniciativas são válidas e apontam no caminho da integração. Além disso, são atividades necessárias para o bem-estar das comunidades de ambos os lados da fronteira. Os secretários de Saúde brasileiros manifestam interesse em poder negociar localmente as necessidades assistenciais e de recursos humanos, fortalecendo as relações territoriais entre os sistemas de saúde dos países.


No Mercosul, como se dá o atendimento de saúde aos estrangeiros?

Luisa:
Com base no estudo das cidades-gêmeas, contatou-se que, de ambos os lados da fronteira, o acesso aos serviços de saúde para o estrangeiro fronteiriço ocorre dentro das possibilidades de cada sistema local de saúde. A busca por serviços de saúde existe em ambas as direções. De modo geral, o atendimento recebido pelo estrangeiro é o mesmo que o prestado ao cidadão nacional. O atendimento às situações de emergência está garantido. Entretanto, dificuldades surgem para ações de saúde especializadas.


E quais as principais reivindicações da população estrangeira?

Luisa:
Em geral, constata-se que o registro de atendimento de estrangeiros no Sistema Único de Saúde (SUS) é precário, dificultando conhecer quais são os serviços de saúde prestados. Onde existe algum tipo de acordo de reciprocidade entre as cidades, ainda que informal, a identificação da nacionalidade, por não ser uma barreira, é mais freqüente. Os resultados indicam que, para além das estratégias de organização, financiamento, regulação e barreiras, mecanismos solidários podem ser mais potentes. Nos casos onde as relações entre as comunidades das cidades-gêmeas são mais amplas, mecanismos para burlar sistemas de controle são menos necessários. Assim, a saúde passa, inclusive, a contribuir para a oficialização da situação de estrangeiros residentes.


Porém, com a implantação de instrumentos de regulação ou sistemáticas de financiamento, entre os quais o cartão de usuário e o financiamento per capita, o acesso às ações e aos serviços de saúde no SUS vêm resultando em barreiras para o acesso e o atendimento de estrangeiros. Se, de um lado, tais instrumentos são importantes para a organização do sistema, de outro, eles têm dificultado o acesso inclusive para brasileiros não residentes e seus descendentes. Embora a busca pelo SUS seja uma realidade crescente, as iniciativas de cooperação entre cidades fronteiriças são ainda dependentes da vontade local.


O que você recomendaria para as políticas regionais de saúde no Mercosul?

Luisa:
Pode-se recomendar que as fronteiras se tornem espaços dinamizados para a coesão econômica e social, com o apoio de recursos do Mercosul e do SUS e com gestão local. Tais recursos são potenciais para melhorar a infra-estrutura de saúde, obter ganhos de escala, formar redes, qualificar profissionais, criar oportunidades de trabalho, aumentar a capacidade resolutiva, incorporar tecnologias e igualar a disponibilidade de serviços. Contudo, é essencial respeitar as características das políticas e sistemas de saúde de cada país e buscar fortalecer processos e espaços de articulação entre as autoridades sanitárias fronteiriças, com o objetivo de favorecer o diálogo, o intercâmbio e o desenvolvimento de projetos comuns de saúde. O Pacto pela Saúde, inclusive, já prevê essa possibilidade com a implantação de Colegiados de Gestão Regional nas fronteiras. O SUS fronteiriço ainda padece de planejamento, organização e financiamento insuficientes para aquela realidade. As relações entre os sistemas de saúde locais sofrem pela ausência de espaços de articulação, por relações governamentais esporádicas e pela incipiência das trocas de informações.

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