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28/03/2011

Relatório de comissão propõe diferenciar usários de traficantes de drogas

Ricardo Valverde


A Comissão Brasileira sobre Drogas e Democracia (CBDD) lançou nesta sexta-feira (25/3), na Fiocruz, um relatório preparado por seus membros que propõe uma revisão no tratamento do tema. Depois de 18 meses de debates e seminários, a comissão, formada por representantes de áreas bem distintas, como a saúde, a educação, os movimentos sociais, a cultura, e a política, entre outros, tem como uma das principais propostas a diferenciação entre usuário de drogas e o traficante. Para o presidente da CBDD e também presidente da Fiocruz, Paulo Gadelha, a abordagem comum em todo o mundo até o momento, a chamada "guerra às drogas", exclusivamente repressiva, falhou. "A comissão acredita que o usuário deve ser tratado como uma questão de saúde e assistência públicas, como está claro no relatório", afirmou Gadelha. No entanto, segundo o presidente da Fiocruz, precisa ficar bem claro que a postura da comissão de forma alguma se confunde com tolerância em relação à violência ligada ao traficante ou ao tráfico internacional de drogas, que deve ser punido com severidade. O documento da CBDD será agora enviado aos ministérios da Saúde e da Justiça e ao Congresso Nacional. O líder do PT na Câmara, deputado Paulo Teixeira (SP), participou da reunião na Fiocruz e também aprovou o relatório.


 O diretor-executivo do Viva Rio, Rubem César Fernandes, e o presidente da Fiocruz, Paulo Gadelha, na reunião da CBDD (Foto: Peter Ilicciev)

O diretor-executivo do Viva Rio, Rubem César Fernandes, e o presidente da Fiocruz, Paulo Gadelha, na reunião da CBDD (Foto: Peter Ilicciev)


Para Gadelha, as instituições da área da saúde pública, como a Fiocruz, podem apresentar bons exemplos de enfrentamento de temas espinhosos que tiveram um encaminhamento positivo junto à sociedade brasileira, como as questões da Aids e a do tabagismo. "Isso porque não tratamos esses temas como tabu. Falamos abertamente, lidando com sexo, moral e religião e conseguimos informar e conscientizar a população dos riscos e prejuízos". Em relação ao crack, que assusta os brasileiros por sua rápida disseminação e capacidade de gerar danos, Gadelha lembrou que o enfrentamento dessa droga é uma prioridade da presidente Dilma Rousseff e do ministro da Saude, Alexandre Padilha.


Segundo o secretário-executivo da CBDD e diretor-executivo da organização não-governamental Viva Rio, Rubem César Fernandes, "o problema da polícia é o bandido. Já o consumo de drogas, como o álcool, o cigarro, a maconha ou o terrível crack é um problema que tem que ser resolvido pela assistência em saúde, com acolhimento e tratamento". Ainda na reunião foi lançada a cartilha Diminuir para somar - Ajudar a reduzir danos é aumentar as possibilidades de cuidado aos usuários de drogas, produzida pelo Viva Rio e pela Secretaria Municipal de Saúde. O material é destinado a agentes comunitários de saúde, que encontram na cartilha subsídios para lidar com o problema.


 A cartilha que será distribuída a agentes comunitários de saúde 

A cartilha que será distribuída a agentes comunitários de saúde 


O relatório da CBDD


Hora de debater e inovar


"Reunidos na Fiocruz, os participantes da Comissão Brasileira sobre Drogas e Democracia (CBDD) vêm a público apresentar as suas conclusões em seguida a 18 meses de trabalhos. Somos um grupo que reúne especialistas de vários domínios, como a Saúde, o Direito, a Economia, as Finanças, o Jornalismo, a Segurança Pública, a Ciência, as Religiões, as Artes, os Esportes, os Movimentos Sociais.


Constatamos que alcançar um mundo sem drogas, como proclamado pela ONU em 1998, revelou-se um objetivo ilusório. A produção e o consumo clandestinos mantêm-se apesar do imenso esforço repressivo. Além dos cultivos, uma nova geração de drogas sintéticas espalhou-se mundo afora. O estigma dificulta a prevenção e o tratamento, que são fundamentais. Contribui, na prática, para um afastamento de parcelas da juventude das instituições públicas.  Os altos ganhos do negócio ilícito reforçam o crime organizado e a corrupção, gerando situações insustentáveis, no Brasil e internacionalmente.


No Brasil, o mercado de drogas ilícitas age abertamente, oferecendo seus produtos à luz do dia. Esse mercado, altamente capitalizado, consegue sobreviver inclusive graças a seu poder de corromper nossas instituições. A associação entre drogas ilícitas e armas gera um ambiente de grande violência e insegurança.


Propomos, portanto, que se abra o debate de maneira franca, sobretudo nos ambientes de convivência jovem. Enquanto as drogas forem encaradas como um tabu, não se discutirá a sério sobre elas na escola, na igreja, na mídia, nas unidades de saúde, nem mesmo em casa com nossos filhos. Necessitamos de boa informação, cientificamente ancorada, que nos ajude a encontrar alternativas. Apelamos às redes sociais, às autoridades (Executivo, Legislativo, Judiciário) e aos órgãos de imprensa para que acolham e estimulem este debate, com destemor.


A mudança do enfoque, com o reforço do papel da saúde pública, deve levar a melhores resultados. As políticas atuais contra o tabagismo são um bom exemplo. A limitação dos espaços e da idade de consumo permitido, as campanhas abertas e bem feitas, o foco na saúde, a participação das pessoas mais próximas, sobretudo de crianças e jovens, tudo isto gera um movimento de opinião que intervém de fato nas consciências e no comportamento.  É mais efetivo e menos traumático.


Há diversos exemplos a observar - Holanda, Bélgica, Alemanha, Espanha, entre outros. A experiência de Portugal é particularmente interessante: desde 2001, a posse e o porte para consumo pessoal de todas as drogas foram descriminalizados naquele país irmão. Descriminalizar não significa legalizar. Significa dizer que, muito embora seu consumo ainda seja proibido, os infratores não são encaminhados à Justiça Criminal. São acolhidos por comissões especiais cujo objetivo é auxiliar o usuário a preservar sua saúde. Após dez anos desta política, Portugal reduziu a criminalidade, produziu baixa expressiva na população prisional e, sobretudo, diminuiu o consumo de drogas entre os adolescentes.


Não se deve tratar igualmente drogas de efeitos diversos. O caso da maconha merece atenção específica.  É a substância ilícita mais consumida e a de menores efeitos perniciosos. A produção para consumo próprio tem sido regulamentada em outros países, inclusive nos EUA, e está prevista até mesmo na lei brasileira.


No outro extremo, temos o crack, motivo da maior preocupação. Nas ruas e nas comunidades, crianças e adolescentes são consumidos pelo vício, formando grupos de pequenas figuras humanas que vivem em condição deplorável. Aí está um dos maiores desafios para a criatividade das políticas de contenção, assistência e saúde, que dependem, evidentemente, de uma intimidade com o problema, suas vítimas, suas famílias e seus vizinhos, para que se vislumbrem caminhos de resgate e reabilitação, enquanto é tempo. 


Sabemos, enfim, que drogas como o cigarro, o álcool e as psicotrópicas, estão próximas e fazem parte do dia a dia. Importa encarar esse fato de frente e indagar sobre como reduzir os danos que cada substância pode provocar. Fazer de conta que vão desaparecer e entregar os seus rastros à polícia, para que delas se ocupe em nosso lugar, já não é admissível. Acreditamos que uma política de drogas mais inovadora e eficaz facilitará o combate ao crime organizado.


Pedimos à sociedade o esforço da discussão serena e equilibrada de um tema que não pode esperar".


Publicado em 25/3/2011.

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