17/10/2012
Danielle Monteiro
Diante do desigual cenário mundial no que diz respeito ao financiamento de P&D para doenças negligenciadas, a 65ª Assembleia Mundial da Saúde (AMS) - órgão máximo de deliberação da Organização Mundial da Saúde (OMS) - aprovou, em maio desse ano, uma resolução que promete impulsionar o debate sobre o financiamento global da pesquisa para a geração de novos medicamentos e vacinas de interesse de países em desenvolvimento. Entre as recomendações do relatório do Grupo Consultivo de Especialistas em Pesquisa e Desenvolvimento: Financiamento e Coordenação (CEWG, na sigla em inglês) - principal objeto da resolução - destaca-se a criação de uma contribuição governamental de 0,01% do PIB, para todos os países, para aplicação em P&D para as enfermidades que afetam as nações menos favorecidas. Os recursos serão empregados em situações na qual a tecnologia não existe ou não é a mais adequada ou o preço do produto não é compatível com a realidade econômica dos países em desenvolvimento.
O coordenador do Cris/Fiocruz, Paulo Buss, e a pesquisadora do CDTS/Fiocruz, Claudia Chamas, recentemente assinaram artigo para o jornal Valor Econômico, no qual falam sobre os benefícios que as medidas propostas poderão trazer para o setor de saúde dos países em desenvolvimento e apontam as principais falhas que impedem maior investimento em P&D para doenças negligenciadas. Em entrevista, Buss e Claudia falaram sobre a trajetória da iniciativa até sua recente aprovação e sugeriram medidas para suprir essas necessidades de saúde que não são atendidas pelos incentivos econômicos dominantes.
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Paulo Buss, coordenador do Cris/Fiocruz. |
AFN: A Assembleia Mundial da Saúde aprovou recentemente a resolução sobre o financiamento global da pesquisa para a geração de novos medicamentos e vacinas que são de interesse da população brasileira e de outros países em desenvolvimento. Discorram sobre a trajetória dessa iniciativa até a sua aprovação.
A Resolução WHA 65.22 é fruto de um rico e complexo processo desenvolvido no âmbito da OMS. Há quase uma década a OMS tem se debruçado sobre o tema da necessidade de medicamentos, vacinas e kits para diagnósticos para doenças que afligem os países em desenvolvimento. Podemos apontar como marco inicial o trabalho empreendido pela Comissão sobre Direitos de Propriedade Intelectual, Inovação e Saúde Pública (2003-2006), que forneceu as bases para a constituição do Grupo de Trabalho Intergovernamental sobre Saúde Pública, Inovação e Propriedade Intelectual (2006-2008) e a aprovação da Estratégia Global e Plano de Ação em Saúde Pública, Inovação e Propriedade Intelectual em 2008.
A Estratégia permitiu uma discussão sobre o conceito de bens públicos globais aplicado a produtos de saúde. Privar a população de bens essenciais por questões relacionadas à estratégia de apropriação privada é eticamente condenável, sobretudo porque, muitas vezes, esses produtos pertencem a empresas, mas foram co-financiados com recursos públicos de instituições de pesquisa, como os Institutos Nacionais de Saúde, dos EUA, por exemplo. O debate “patente x paciente” sempre foi muito tenso e a Estratégia Global e Plano de Ação da OMS aborda diversos elementos a esse respeito. Outra questão relevante é a do “gap 10/90”, ou seja, apenas 10% dos recursos destinados à pesquisa são aplicados em problemas que acometem 90% da população. Nesse contexto, as pessoas não conseguem pagar pelo medicamento ou a solução não existe, necessitando de intermediação do governo.
Logo após a aprovação da Estratégia foi criado o Grupo de Trabalho de Especialistas sobre Financiamento e Coordenação da Pesquisa e Desenvolvimento (2009-2010). Em 2010, a Assembleia Mundial da Saúde decidiu pela constituição do Grupo Consultivo de Especialistas em Pesquisa e Desenvolvimento: Financiamento e Coordenação (CEWG, na sigla em inglês), que se debruçou sobre propostas de países, atores diversos e do relatório do grupo predecessor para apontar medidas para a inovação em saúde nos países menos favorecidos. O alicerce das recomendações do CEWG é o conceito de bem público global. A partir deste enquadramento, as propostas buscaram enfatizar que é muito mais eficiente gerar conhecimento que possa ser livremente utilizado para a ampliação do acesso das populações a produtos de saúde. Além disso, as contribuições financeiras merecem ser proporcionais ao tamanho de cada economia. O relatório propõe uma convenção de natureza vinculante como principal instrumento para viabilizar as propostas em nível global.
A resolução abre uma rodada de negociações para o estabelecimento de um acordo no qual se priorizará a pesquisa para doenças de interesse dos países em desenvolvimento. A destinação de uma porcentagem do PIB global para financiar as investigações, com a participação de todos os países, é uma solução bastante criativa que contou com a aliança, pela primeira vez, da própria indústria farmacêutica. A dificuldade em implementar uma proposta desse tipo é a crise econômica, que reduz orçamentos sociais, nos quais está incluído o financiamento de pesquisa. Entretanto, a aplicação de recursos em pesquisa é um investimento e uma obrigação moral, e não um gasto. Existe uma resistência, também, por conta dos países desenvolvidos. Eles recentemente comprometeram seus orçamentos para ‘salvar’ o capital financeiro internacional em detrimento da saúde pública e outras prioridades sociais. É uma questão política e ética, uma escolha entre civilização e barbárie que deve ser sempre denunciada.
AFN: Vocês citam, em seu artigo, que o cenário no qual essa iniciativa foi aprovada é dramático e desproporcional. Quais são as características desse cenário?
O relatório do CEWG descreve com muitos detalhes e referências o quão desproporcional é o financiamento da pesquisa em saúde no mundo. Após o advento do Acordo Trips, os países membros da Organização Mundial do Comércio tiveram de incorporar em suas leis proteção para as patentes de produtos e processos farmacêuticos. Em vários países em desenvolvimento, observa-se que a participação de titulares não-residentes de patentes farmacêuticas está acima de 90%. Os efeitos monopolísticos da patente incluem a prática de preços mais elevados e a impossibilidade de concorrência (genéricos) durante um longo tempo. Tampouco existe a contrapartida da produção local, o que seria especialmente conveniente no caso dos países em desenvolvimento. Além disso, a agenda global de pesquisa e inovação não reflete todas as necessidades dos países do Sul, que sofrem com recursos escassos. Assim, é necessário aperfeiçoar os instrumentos políticos para superar esse quadro de fragilidade tecnológica e garantir às pessoas a melhor terapia existente a preços justos.
Em suma, é uma questão de múltiplos contornos. Existe o interesse das indústrias privadas, dos institutos de pesquisas, dos governos e da própria população. O financiamento à pesquisa poderá ser resolvido a partir da resolução se todos os envolvidos se empenharem em concretizá-la. No entanto, restam inúmeras questões politicamente sensíveis a serem operacionalizadas na ‘Estratégia Global e Plano de Ação’. Um exemplo é o acesso aos medicamentos, que depende dos sistemas de saúde e também dos produtores mundiais. Os medicamentos em geral são muito caros para países pobres e, por isso, o acesso dos países pobres e dos pobres de todos os países fica imensamente dificultado. Muitas vezes o produto até chega, de fato, aos governos, mas estes acabam sendo frágeis demais para fazer o medicamento fluir até o usuário que dele necessita. É uma agenda cheia que merece ser resolvida pelos governos nacionais e pela comunidade internacional.
AFN: Que medidas devem ser tomadas para que essas questões sejam solucionadas?
No plano intergovernamental trata-se de um processo de convencimento dos países em desenvolvimento, pela solidariedade, ética e cooperação internacional. Mas a sociedade civil também tem participação fundamental para cobrar, pressionar a responsabilização do país no detalhamento do projeto. A mídia também é uma grande aliada para alimentar com informação esses grupos civis e manter essa discussão acesa. Um caso interessante e razoavelmente bem-sucedido é o próprio controle do HIV, que foi uma mobilização geral, reunindo diversos parceiros nos planos globais e nacionais. O projeto para pesquisas de doenças negligenciadas também pode e deve dialogar com essas experiências e incorporar suas propostas colaborativas.
É imprescindível aprofundar o diálogo entre os países, buscando novas abordagens para os problemas com base em evidências concretas. Nos últimos anos, alguns países em desenvolvimento conseguiram fortalecer suas estruturas industriais no campo da saúde. Por exemplo, a Índia valeu-se de múltiplos recursos na sua trajetória de industrialização - as leis, o Poder Judiciário, os investimentos governamentais, a defesa da sua posição nos fóruns multilaterais, as alianças com o setor produtivo. Hoje, vários canais diplomáticos - OPAS, BRICS, IBAS, CPLP, UNASUL, G-20 - podem abrigar discussões inovadoras que aliem os interesses de fortificação dos complexos industriais de saúde às preocupações humanitárias. O compartilhamento de lições exitosas de países com necessidades semelhantes é um caminho possível.
AFN: O Brasil é um exemplo para os países desenvolvidos e em desenvolvimento nesse aspecto?
O programa brasileiro de imunizações é um caso de sucesso, assim como a política de acesso a diagnóstico e medicamentos para HIV/AIDS. A autossuficiência em vacinas começou em 1975, com a criação de Biomanguinhos, na Fiocruz. Somente anos depois os compromissos com imunização foram incorporados globalmente pelo Global Alliance for Vaccines and Immunization (GAVI). O Brasil tem bons exemplos de programas, que apenas recentemente passaram a ser mais conhecidos, pois houve uma abertura mais planejada para a cooperação internacional e experiências se difundiram.
Nos últimos anos o Brasil tem implementado um conjunto de incentivos muito interessantes com foco na inovação e na produção local. O Programa Mais Saúde é um exemplo claro, que posiciona a saúde como elemento estratégico para o desenvolvimento nacional. Em um dos seus eixos, explicita o crescente peso das importações de saúde na nossa balança de pagamentos e oferece como resposta uma política consistente de investimentos em infraestrutura, pesquisa e inovação. Não podemos esquecer o papel do BNDES nessa retomada de investimentos e de promoção de um processo de substituição de importação, fincado em bases muito mais sólidas do que em décadas passadas. Em paralelo, a Finep, as Fapes, o CNPq, a Capes e o orçamento do Ministério da Saúde ajudam a compor este pacto de investimentos para o desenvolvimento sustentado.
Este caráter estruturante, que permite a incorporação de tecnologia, a geração de renda e a ampliação do emprego, foi mais uma vez revigorado pela sanção da Lei n 12.715, de 2012, que autoriza a dispensa de licitação para as parcerias entre os laboratórios públicos e privados para a fabricação de produtos prioritários para o SUS. O aprofundamento do SUS e o desenvolvimento do País não se viabilizam sem este nível decisório. A vinculação do poder de compra do Estado ao estímulo ao desenvolvimento tecnológico e produtivo e o aporte de novos recursos constituem experiências que desenham um novo modelo de desenvolvimento, muito mais inclusivo. Na verdade, algumas dessas opções já foram usadas no passado por alguns países. Mas, depois que estes se desenvolveram, chutaram a escada, como ensina o economista Ha-Joon Chang.
AFN: Foram estabelecidas metas específicas com a aprovação da resolução?
O documento não chega nesse nível de detalhamento porque existem os programas consensuais dos países da OMS que apontam as prioridades, a chamada magnitude do problema, as falhas existentes, que alimentarão essa questão. A resolução permite ampliar os debates por meio das consultas nacionais e regionais. Em novembro, haverá um novo encontro dos países-membros para coordenar os avanços em torno das recomendações do relatório do CEWG. Dada a complexidade do assunto e da natureza da principal recomendação, não há como chegar a consensos no curto prazo. Naturalmente, a crise econômica é empecilho, empurrando assuntos de ordem social para o segundo plano.
AFN: Qual a previsão para se começar a detalhar essas metas?
Já existe um mecanismo dentro da OMS detalhando esse processo. Em Janeiro de 2013, serão apresentados mais detalhes na reunião do Conselho Executivo (grupo de 34 países que dirige a OMS, em representação do conjunto de 191 Estados-membros), preparando informe para a Assembleia Mundial da Saúde que reúne a todos e se realizará em maio de 2013.
AFN: Qual a importância do papel desempenhado pelo Brasil e a Unasul na aprovação da resolução?
Desde o princípio, em 2006, o Brasil foi um dos principais articuladores e defensores da Estratégia Global e Plano de Ação por meio de uma eficiente articulação de diplomatas e profissionais da saúde que fizeram com que tudo avançasse. Sem dúvida, o Brasil tem exercido uma liderança histórica nesse tema a partir de uma condução equilibrada e, ao mesmo tempo, inovadora de posições na Assembleia Mundial de Saúde e nas demais instâncias. A Unasul assumiu esse tema como agenda política prioritária desde sua criação e passou a falar em nome de todos os países, tornando-se importante protagonista política no processo e certamente seguirá sendo. Hoje, a Unasul propicia uma plataforma de diálogos na região e influencia decisivamente o processo em nível multilateral.
AFN: Qual a importância do papel exercido pela Fiocruz na aprovação da resolução?
A Fiocruz é uma referência mundial na solução de problemas de saúde que afetam as populações carentes. Oswaldo Cruz plantou a semente da ousadia em Manguinhos. As pesquisas com Artemisinina contra a malária, a decisão de apoiar o licenciamento compulsório de patentes de medicamentos para HIV, soluções para diagnóstico, vacinas ou medicamentos para as doenças negligenciadas, a cooperação com Moçambique na fábrica de antirretrovirais fazem parte do leque de iniciativas em C&T e da cooperação internacional da Fiocruz que estão perfeitamente alinhadas com a resolução. A Fundação exerce o protagonismo em manter esse assunto nas agendas internacionais. Somos uma fonte permanente de propostas criativas nessa área e contamos com um grupo de pensadores e pesquisadores que explora todas as possibilidades.
Hoje, temos um sólido parque científico e de pós-graduação, unidades produtivas aliadas ao desenvolvimento tecnológico e o projeto do Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde (CDTS), que objetiva construir pontes entre o conhecimento científico e a área produtiva e estimular as parcerias tecnológicas, uma lacuna que o Brasil precisa urgentemente preencher. Esta poderosa referência foi lembrada em várias fases dos trabalhos do CEWG e grupos anteriores, posto que se trata de um modelo profundamente comprometido com os objetivos de direito universal à saúde. A Presidência da Fiocruz, em especial o CRIS, a VPPIS e o CDTS/VPPIS, acompanhou ativamente toda a preparação para a Assembleia, em estreita colaboração com o Itamaraty.
AFN: Quais são as iniciativas que, em sua opinião, devem ser implantadas ou retomadas a partir da aprovação da resolução?
O que devemos retomar agora são as discussões em torno da implementação dos demais pontos da Estratégia Global e Plano de Ação. Como o foco atual é o financiamento às pesquisas, acabamos esquecendo outros aspectos, como os mecanismos de acesso aos medicamentos já existentes, que é talvez o ponto mais importante. O que encarece o medicamento não é o insumo material, nem o processo de fabricação, mas sim o valor imaterial do produto, a patente. Continuamos mundialmente com medicamentos caríssimos e esses preços não expressam seu verdadeiro valor.
Em relação às recomendações do relatório do CEWG, os próximos encaminhamentos dependerão do que será acordado no encontro dos países em novembro, bem como da reunião do Conselho Executivo da OMS e da Assembleia Mundial da Saúde. Como esperado, há resistências a algumas propostas, uma vez que elas indicam mudanças estruturais na produção do conhecimento e da inovação. De todo modo, a agenda de debates está lançada, os países e as regiões estão mobilizados e a participação da sociedade civil tem sido expressiva.
Publicado em 17/10/2012.