Início do conteúdo

02/03/2007

Saúde: um político ou uma política?

Sonia Fleury


Nas últimas semanas a indicação de um novo ministro para a pasta da Saúde passou a ocupar as páginas dos jornais a partir de uma suposta contradição entre a escolha de um político ou de um técnico para ser o dirigente da área. Esta questão veio à tona nas negociações com o PMDB, importante partido da base de apoio da coalizão governamental. Alguns críticos mordazes maldizem estas negociações como sendo a partilha do botim, desconhecendo, por ingenuidade ou maledicência, as características do nosso sistema político, que exigem a composição de uma coalizão partidária que assegure a governabilidade. No nosso entender, as negociações do governo com os partidos políticos são, ao contrário, parte intrínseca do amadurecimento da nossa jovem democracia.


 Sonia Fleury: o SUS é uma das grandes conquistas da sociedade brasileira (Foto: Ivone Perez)

Sonia Fleury: o SUS é uma das grandes conquistas da sociedade brasileira (Foto: Ivone Perez)


No entanto, a presença marcante da discussão sobre o próximo titular da pasta da Saúde encontra-se limitada pela ausência de um debate mais profundo sobre a política de saúde que deverá ser implementada no segundo governo Lula. Desde a campanha presidencial a saúde foi tratada de forma marginal, beirando a ausência, nos programas dos candidatos. Esta omissão é inteiramente incompatível com a importância dada pela população à questão da saúde, como mostram todas as pesquisas e os dramas cotidianos que assistimos. Com isto, perdeu-se uma excelente oportunidade de gerar um debate nacional e formar um consenso suprapartidário sobre as linhas mestras da condução da política de saúde. A fatura está sendo paga agora, quando o governo se vê constrangido a negociar em torno de nomes e não de idéias, a partir de uma falsa oposição entre perfis técnicos e políticos. É hora de mudar este jogo e recolocar no debate a verdadeira questão: qual é a política de saúde do governo, que este ministro deverá implementar?


O Sistema Único de Saúde (SUS) é uma das grandes conquistas da conquistas da sociedade brasileira, permitindo o acesso universal a uma atenção integral de saúde. Não nasceu no seio da burocracia e nem foi formulado pelas agências internacionais: foi fruto de muitas lutas da sociedade civil organizada, tendo forte enraizamento na cultura e política nacionais. Permitiu a construção de um modelo de federalismo negociado e pactuado e uma forma de gestão pública com descentralização do poder para os níveis subnacionais, além de gerar novos formatos de participação social. Ambos representam formas institucionais inovadoras, que revitalizaram a democracia brasileira, tendo gerado um modelo não liberal de reforma do Estado.


Mas o SUS é um projeto em construção e, em cada fase, novos problemas se colocam para o financiamento, acesso, regulação, melhoria da qualidade, humanização do atendimento, valorização dos profissionais, produção de insumos e incorporação de tecnologias, melhoria da gestão dos serviços, aumento das práticas preventivas, eliminação das discriminações etc. São problemas complexos, em uma área que apresenta alguns dos maiores desafios para a gestão em todo o mundo contemporâneo, dada a complexidade dos fatores envolvidos.


No entanto, o processo gerado pelo SUS, de uma permanente construção conjunta de diretrizes e consensos políticos, fundados no mais rigoroso conhecimento técnico, permitiram gerar as linhas gerais que, como representantes das entidades comprometidas com o avanço da Reforma Sanitária, postulamos para a política de saúde e propomos para o debate: a reorientação do predomínio do modelo de atenção, desde práticas curativas para a atenção preventiva; e o aumento do gasto público em saúde - extremamente reduzido, como demonstram as comparações internacionais e mesmo entre os países da América Latina.


Para tanto, seria necessário o empenho governamental e da sua base de apoio no Congresso para a regulamentação da emenda constitucional 29, que garantiria base e definição adequadas dos recursos para a saúde. Também é imprescindível que se defina uma estratégia de redução programada, até a sua extinção, da DRU, medida que permite a desvinculação dos recursos que a constituição destinou para a saúde para outros fins; o combate à corrupção, o aumento da transparência nas contas públicas e a melhoria do gasto em saúde, com mudanças no modelo de gestão que permitam aperfeiçoar a organização dos serviços, a qualidade do atendimento, a eficiência e a efetividade dos tratamentos; uma política de investimentos em recursos humanos e melhoria da rede de serviços, além do investimento estratégico na produção de insumos e medicamentos; a verdadeira universalização do acesso a um serviço de qualidade e com atendimento humanizado.


Enfim, está na hora de termos um SUS para valer. Estes são os termos do acordo que urge ser negociado. São compromissos que definem o perfil do ministro da Saúde.


*Sonia Fleury é presidente do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes)

Voltar ao topo Voltar