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06/09/2013

Saberes e práticas sobre informação e TI em saúde precisam estar a serviço da sociedade

Tatiane Vargas


Recentemente, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), por intermédio de seu Grupo Temático de Informações em Saúde e População (GTISP), abriu consulta pública ao 2º Plano de Desenvolvimento da Informação e Tecnologia de Informação em Saúde para o quinquênio 2013-2017 (2º PlaDITIS). O plano reforça a necessidade de que os saberes e práticas do campo da informação e tecnologia de informação em saúde precisam estar a serviço da sociedade, da justiça social e do exercício do dever do Estado brasileiro em garantir atenção integral à Saúde, com qualidade equanimemente distribuída. Para comentar a consulta pública, que está aberta até o dia 30 de setembro, apontar os avanços já conquistados na área e as perspectivas futuras, a pesquisadora do Departamento de Ciências Sociais da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) e coordenadora do Grupo Temático de Informações em Saúde e População, Ilara Hämmerli, concedeu entrevista ao Informe Ensp.

Qual é o panorama da área de informação e tecnologia de informação em saúde no Brasil?

Ilara Hämmerli: A saúde mobiliza um amplo sistema produtivo, que responde, segundo dados de 2011, por algo em torno de 9% do Produto Interno Bruto (PIB), 10% do emprego formal qualificado e por uma atividade científica que participa com cerca de 25% das publicações nacionais. Entretanto, esse sistema produtivo não se move exatamente de acordo com os interesses da sociedade para promover, prevenir e ofertar atenção à população.

No que se refere às ações informacionais em saúde, as empresas de tecnologia de informação e as de telecomunicação (TIC) articulam-se com o complexo econômico industrial em saúde (Ceis) em uma tendência à cartelização do mercado brasileiro de TI em saúde e à verticalização monopolista da cadeia produtiva. O complexo econômico de TI/Telecom avança sobre o SUS como um grande mercado promissor, favorecido pelo contínuo esvaziamento das instâncias públicas de informação e tecnologia de informação em saúde (Itis), em um contexto de subfinanciamento do SUS.

O histórico sucateamento das instâncias públicas de Itis expressa uma das consequências da racionalidade do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (Plano Bresser/1995), do governo FHC, que defende a “transferência para o setor privado das atividades que podem ser controladas pelo mercado”, ao distinguir Atividades Exclusivas do Estado e Serviços Não Exclusivos, incluindo nestes últimos hospitais, universidades, centros de pesquisa e museus, por exemplo. As ações de ITI foram incluídas neste grupo ou no de Produção para o Mercado, com a passagem para o setor privado da produção e desenvolvimento por considerar que, “...em princípio, este realiza de forma mais eficiente".

A iniciativa da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), por intermédio do Grupo Temático de Informações em Saúde e População (GTISP), em abrir consulta pública sobre seu 2º Plano de Desenvolvimento da Informação e Tecnologia de Informação em Saúde para o quinquênio 2013-2017 (2º. PlaDITIS), discute esta e outras questões, procurando contribuir para o debate e luta da sociedade em prol de uma “[...] cidadania real (e não apenas formal), com a garantia de direitos sociais, como educação, saúde e transporte públicos e o respeito dos representantes eleitos à vontade dos eleitores.” Portanto, essa consulta pública está inserida no amplo esforço do movimento da Reforma Sanitária, nos termos da Nota Pública do Movimento da Reforma Sanitária: Mais Saúde! Mais SUS.

Qual é a importância do Plano Diretor de Desenvolvimento da Informação e Tecnologias de Informação em Saúde?

Ilara: O 2º PlaDITIS reforça a necessidade de que os saberes e práticas do campo da Itis precisam estar a serviço da sociedade, da justiça social e do exercício do dever do Estado brasileiro em garantir atenção integral à saúde, com qualidade equanimemente distribuída. Essa afirmação de princípio se faz necessária diante de importantes conglomerados econômicos que se formam no âmbito da TI em Saúde. Tal evidência requer atenção nas articulações que se estabelecem entre público e privado para que não representem uma canalização de interesses empresariais para o interior da res publica, reduzindo a função do SUS a um rico mercado de contratos. Não se trata aqui da superada dicotomia público X privado, estatal X mercado.

A questão que se coloca é: qual o papel que se espera do Ministério da Saúde, das Secretarias de Estado e Municipais de Saúde nessa conjuntura? Por isso, o primeiro item abordado no 2º PlaDITIS é o Papel do Estado e Relação público-privado. O esvaziamento estrutural das instâncias de Itis torna sua gestão vulnerável à forte pressão das empresas de TI em disputa pelo mercado da saúde. Essa corrida ao tesouro é facilitada pela separação da gestão da informação da gestão da TI em pleno aceleramento da convergência digital.

Essa dinâmica econômica frente aos interesses políticos, sociais, científicos, tecnológicos, culturais e simbólicos tecem a contextura da atual governança da Itis nas três esferas de governo, com o risco da subordinação da política pública aos interesses privados, com aplicação de recursos do SUS em processos de terceirização e aquisição de equipamentos, tecnologias e importação de padrões proprietários distantes das diversidades culturais, regionais e institucionais brasileiras.

Diante desse contexto, o 2º PlaDITIS defende que seja adotado o conceito de bem público para os sistemas de informações e aplicações em Itis definidos como complexos e estratégicos para o SUS, em sua dimensão tangível e intangível, garantida a privacidade do cidadão. Destaca que esse acervo é patrimônio da sociedade brasileira, registra a memória de trajetória de um povo, em que o interesse público tem de ter primazia. Cita como exemplos de sistemas de informações complexos e estratégicos: Cartão Nacional de Saúde (CNS), Registro Eletrônico em Saúde (RES), Sistema de Informação de Regulação Assistencial e Portal do Cidadão. Preconiza que uma nova política de Estado da Itis explicite o que precisa ficar na mão do público e o que pode e até deve ficar na mão do privado e como se dará essa relação.

A atual práxis de TI em saúde, ao adotar o mesmo modelo de desenvolvimento tanto para sistemas complexos e estratégicos como para sistemas com workflow estruturáveis (operacionais), faz a lista de insucessos e de recursos desperdiçados aumentar. Há evidências suficientes de fracassos na história recente para que a gestão da saúde no Brasil continue a nivelar toda e qualquer aplicação em ITI em Saúde como sendo a mesma coisa.

Além da governança e gestão da Itis, são também trabalhadas no 2º. PlaDITIS as seguintes dimensões estratégicas para o desenvolvimento da Itis: Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação na área temática Itis; Ensino e formação permanente de equipe de informação e TI em saúde; Ética, privacidade e confidencialidade; Informação e TI em saúde: Democracia, controle social e justiça cognitiva.

De que maneira a consulta pública ao plano diretor poderá auxiliar para o seu avanço?

Ilara: A Abrasco, por meio do GTISP, ao organizar o 2º PlaDITIS e convidar pesquisadores, docentes, gestores, profissionais de saúde e representantes da sociedade civil a participarem dos debates que se formam em torno das propostas apresentadas cumpre com sua missão de fomentar o debate crítico e propositivo, se integrando às forças da sociedade que lutam para a consolidação do ditame constitucional: direito universal à saúde com qualidade. Como uma das componentes fundadoras do Grupo Temático de Informações em Saúde e População (GTISP) e, atualmente, no exercício de sua coordenação, reitero o convite a todos os que se dedicam à saúde em nosso país para que enviem suas propostas, sugestões, críticas e comentários para o e-mail pladitisabrasco@gmail.com até 30 de setembro.

As contribuições são fundamentais para o aprimoramento do PlaDITIS 2013-2017, e considero que constituem um relevante exercício cívico. Procura-se, assim, garantir que a complexa variedade de contextos e visões esteja contemplada na versão final, em uma espiral democrática, participativa e solidária. A terceira versão consolidará o pensamento de consenso tanto da comunidade abrasquiana como dos participantes da consulta pública. Este será o documento submetido à validação da Direção da Abrasco, chegando-se à versão final do PlaDITIS, que expressará a posição defendida pela entidade nos diversos fóruns em que participe.

Como a senhora avalia o avanço já conquistado nas áreas de informação e tecnologias da informação em saúde?

Ilara: Sem sombra de dúvidas há avanços. E com certeza, ao destacar alguns, haverá importantes lacunas entre esses avanços. Mas considero a iniciativa da Rede Interagencial de Informações para a Saúde (Ripsa), que surge em 1996, por acordo de cooperação do Ministério da Saúde com a Opas, um marco histórico na política de saúde brasileira. Constitui um caso de sucesso de inovação na gestão, produção e uso das informações em saúde. Diante de sua excelência, inicia, em 2009, um estratégico movimento de descentralização por meio do apoio à implantação de sua metodologia nos estados que queiram aderir.

Dois outros importantes marcos na história recente são a consolidação e expansão da Rede Universitária de Telessaúde (Rute), que surge em 2005 por iniciativa do Ministério da Ciência e Tecnologia, sob coordenação da Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP) e, em 2007, o Programa Nacional de Telessaúde (atual Telessaúde Brasil Redes), do Ministério da Saúde. Não pode deixar de ser citado o empenho da Secretaria de Vigilância em Saúde do MS no sentido de ampliar a cobertura de sistemas sob sua gestão e, ao mesmo tempo, melhorar a qualidade da informação, por exemplo, com a diminuição do percentual de causas de óbitos mal definidas.

Em 2012, identifico duas promissoras iniciativas do Ministério da Saúde que retomam o debate em torno de uma Política Nacional de Informação e Informática em Saúde e inicia a elaboração da Visão Estratégica de e-Saúde para o Brasil, esta última sob a coordenação do DataSUS/SGEP/MS. e-Saúde é a tradução de e-Health, terminologia proposta pela OMS para toda e qualquer ação em saúde que envolva a mediação de tecnologia de informação e comunicação. A depender dos desdobramentos das duas iniciativas citadas, elas poderão significar avanços históricos para o SUS ou farão parte da coleção de experiências frustrantes, de fracassos ou, pior, de desperdício de recursos públicos. A história nos dirá.

De que maneira a Ensp pretende contribuir com o plano diretor?

Ilara: Como sou otimista por opção, ouso dizer que um dos potenciais desdobramentos virtuosos da iniciativa de e-Saúde pode ser a articulação que está em gestação, no âmbito de instituições de pesquisa e ensino relacionadas aos diversos saberes e práticas necessários, para que ações de e-Saúde avancem no país. Observa-se a existência de forte compromisso da comunidade científica em conseguir diminuir certa distância que ainda ocorre entre resultados e inovações provenientes da C&T e sua efetiva incorporação à práxis de saúde no país, em especial no SUS. Como uma das estratégias para a superação desse problema, vem sendo cultivada a ideia de as instituições de ensino e pesquisa em e-Saúde operarem em rede. A Fiocruz e a Ensp já manifestaram a decisão institucional de ingressarem nesse movimento.

Sabe-se que a consolidação da e-Saúde pressupõe um esforço amplo, contínuo, no qual as instituições de pesquisa, ensino e inovação podem e querem participar de um trabalho cooperativo, solidário colocado a serviço dos interesses coletivos, adotando o princípio de bem público para as aplicações complexas e estratégicas em e-Saúde para o SUS resultantes de sua atuação em rede. Mas, até onde se constituirá em avanço? Lembro-me de um ditado turco que diz algo como “As noites estão grávidas e ninguém sabe qual será o dia que nascerá.”

O que isso significa para a Escola Nacional de Saúde Pública?

Ilara: Penso que significa uma importante oportunidade, mas não só para Ensp. Participar de uma rede de instituições de pesquisa, ensino e inovação em e-Saúde configura-se como um cenário promissor de maior aproximação da Saúde Coletiva aos complexos problemas inerentes às ações de e-Saúde. Assim, ampliamos as possibilidades de seus saberes e práticas contribuírem para os avanços necessários ao fortalecimento do SUS. Isso se traduz em pesquisas e inovações translacionais e transdisciplinares e processos formadores de competências em e-saúde, que inclua matrizes de conhecimento da saúde coletiva, como práticas de gestão, avaliação e prospecção em e-saúde, transculturalidade de modelos, práticas, padrões e protocolos em e-saúde, metodologia de translação do conhecimento, tecnologia, inovação e avaliação dos impactos éticos e culturais da e-saúde no SUS e na população brasileira.

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