18/04/2005
Adriana Melo
Sanguessugas são capazes de transmitir o Trypanosoma evansi, parasita de cavalos que causa grande prejuízo à pecuária na região do Pantanal mato-grossense. É o que mostra uma pesquisa realizada no Laboratório de Imunomodulação do Departamento de Protozoologia do Instituto Oswaldo Cruz (IOC). O T. evansi é o protozoário causador do Mal de Cadeiras, doença também conhecida como surra, endêmica no Pantanal e em outras regiões alagadiças. Assim como ocorre com os tabanídeos - moscas hematófagas conhecidas como mutucas, que reconhecidamente transmitem a doença -, as sanguessugas são vetores mecânicos do T. evansi. Nessa forma de transmissão, ao contrário da biológica, o parasita não usa o maquinário celular do vetor para completar parte de seu ciclo de vida. Mas como o tripanossomo sobrevive por algumas horas no aparelho bucal do vetor, ele é capaz transmiti-lo de um animal para outro.
Para demonstrar a transmissão, as sanguessugas usadas na pesquisa foram alimentadas em ratos (Rattus norvegicus), que haviam sido infectados com uma cepa de T. evansi isolada de capivaras do Pantanal. Depois de 30 minutos, ratos saudáveis criados em laboratório foram expostos às sanguessugas infectadas. Exames de sangue diários foram realizados durante 40 dias, depois dos quais os animais foram sacrificados. Eles apresentavam um grande número de parasitas no sangue.
Também foram feitos exames do sangue retirado das sanguessugas: 15 minutos após a alimentação havia parasitas com movimento intenso. Até 48 horas após a alimentação ainda foram encontrados tripanossomos íntegros, embora inertes. Isso sugere que os tripanossomos não são destruídos no aparelho digestivo das sanguessugas. Os parasitas foram encontrados dispersos em todo o corpo das sanguessugas: aparelho bucal, estômago, intestino e glândulas. No intestino eles formam grumos arredondados, o que os pesquisadores supõem ser um mecanismo de defesa. Nas glândulas, os tripanossomos são encontrados no interior de células epiteliais.
Nas mutucas a possibilidade de transmissão cai drasticamente entre 15 minutos e 24 horas após a alimentação. Essa semelhança reforça a hipótese de que as sanguessugas podem passar o T. evansi de um animal para outro. Além disso, as áreas endêmicas do Mal de Cadeiras são ecossistemas alagados, como é o caso do Pantanal mato-grossense e da Ilha de Marajó, no Pará. Nesses locais, a incidência do Mal de Cadeiras é baixa na época em que os tabanídeos são mais numerosos - nos meses que precedem a estação chuvosa - e aumenta quando as moscas são escassas, justamente no período em que as sanguessugas são mais numerosas.
"A explosão de T. evansi no Pantanal está relacionada a fatores como a abundância dos vetores e a presença de animais, selvagens ou domésticos, que servem como reservatório do parasita, como capivaras, quatis e cães", diz João Carlos Carreira, coordenador do estudo. Vários animais silvestres são naturalmente infectados pelo T. evansi. A infecção pode ser assintomática - nesse caso, os animais silvestres atuam como reservatórios da doença.
É provável que a transmissão também se dê pela ingestão do parasita, a exemplo do que acontece com o Trypanosoma cruzi, protozoário do mesmo gênero causador da doença de Chagas. Capivaras são mamíferos semi-aquáticos que se alimentam de algas e do capim à margem dos rios. É possível que engulam sanguessugas junto com esses vegetais, o que também pode acontecer com os cavalos.
O aumento da criação de gado no Pantanal causou um intenso tráfego de cavalos, bois e cães entre as fazendas, o que pode ter contribuído para a disseminação do Mal de Cadeiras. Os sintomas são febre, anemia progressiva, fraqueza, emagrecimento, sangramentos nasais e oculares e uma manqueira típica que dá nome à doença. O parasita coloniza todos os órgãos do cavalo, diminuindo sua produtividade e afetando a reprodução. Se não for tratada, a doença pode ser fatal.
O T. evansi foi o primeiro tripanossomo patogênico descoberto: em 1880 Griffith Evans encontrou organismos móveis no sangue de cavalos e camelos doentes. O protozoário surgiu provavelmente na África e teria sido introduzido nas Américas pelos colonizadores europeus, mas a origem e evolução desses protozoários da ordem Kinetoplastida ainda são pouco conhecidas. Hoje a distribuição geográfica da doença é ampla: ocorre na África, na Ásia e nas Américas Central e do Sul.
"A maior importância da pesquisa realizada na Fiocruz é lançar uma luz sobre a evolução dos tripanossomos", explica Carreira. "A descoberta corrobora a hipótese de que os tripanossomos que afetam crocodilos, aves e mamíferos - transmitidos por insetos - seriam descendentes daqueles transmitidos por sanguessugas, que atacam peixes, anfíbios e répteis aquáticos". O estudo também abre caminho para a pesquisa de métodos que combatam a transmissão do Mal de Cadeiras pelas sanguessugas.
O estudo das sanguessugas vai continuar. "No Brasil existem muito poucos estudos relacionados à ecologia e anatomia das espécies nativas", diz Carreira. Por séculos as sanguessugas foram uma ferramenta comum para os médicos. Com os avanços da medicina, em meados do século19 as práticas de sangria e aplicação de sanguessugas foram abandonadas. Nos últimos anos, entretanto, as sanguessugas têm sido utilizadas no auxílio da restauração da circulação em casos de danos severos de tecidos e no reimplante de membros. "A hirudina, principal anticoagulante da saliva das sanguessugas, atualmente têm sido produzida com a tecnologia de DNA recombinante e administrada em pacientes que passaram por angioplastia coronária e no tratamento de trombose venosa profunda, entre outros usos".