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02/12/2016

Saúde adota técnica da Fiocruz no tratamento de leishmaniose

Antonio Fuchs e Juana Portugal (INI/Fiocruz)


A leishmaniose tegumentar é uma doença provocada por protozoários flagelados do gênero Leishmania, da família Trypanosomatidae, que se caracteriza por apresentar feridas indolores na pele ou mucosas do indivíduo afetado. O tratamento preconizado consiste na aplicação, em grandes quantidades, de medicamentos contendo antimônio pentavalente por via intramuscular ou intravenosa. Há mais de 30 anos, o Instituto Nacional de Infectologia (INI/Fiocruz) vem desenvolvendo o “tratamento intralesional”, uma metodologia inovadora que agora está sendo adotado pelo Ministério da Saúde: a injeção, em menores doses, da mesma medicação (antimoniato de meglumina conhecido como glucantime), de forma subcutânea diretamente nas feridas. O novo tratamento resulta em maior segurança para a saúde do paciente, pois o antimônio pentavalente pode ter efeitos tóxicos acumulativos, e apresenta praticamente a mesma eficácia utilizando um número menor de doses do medicamento. O trabalho, iniciado nos anos 80 pelo dermatologista do Instituto, Manoel Paes de Oliveira Neto, vem sendo conduzido pela equipe do Laboratório de Pesquisa Clínica e Vigilância em Leishmanioses (LaPClinVigiLeish), sob a coordenação do pesquisador Armando Schubach.

Ao longo desse período, além do trabalho original, publicado por Manoel Paes nos anos 1990, Schubach lembra que outros trabalhos sobre o tratamento intralesional da leishmaniose foram apresentados e publicados. Por exemplo, a tese de doutorado de Érica Vasconcellos, no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Pesquisa Clínica em Doenças Infecciosas do INI/Fiocruz [conceito 6 na Capes]. No momento, encontra-se em andamento a dissertação de mestrado de Maria Cristina Duque, no mestrado profissional em Pesquisa Clínica do INI. Esta dissertação, realizada no município de Timóteo, Minas Gerais, é pioneira no emprego do tratamento intralesional numa unidade básica de saúde. Entretanto, para comprovação científica da eficácia e segurança do novo método, em nível nacional, falta ainda realizar um ensaio clínico controlado, randomizado e multicêntrico. A preparação deste estudo está sendo articulada e coordenada pelo pesquisador do LaPClinVigiLeish, Marcelo Lyra, com apoio do Grupo Técnico das Leishmanioses, da Secretaria de Vigilância em Saúde, do Ministério da Saúde (GT-Leishmanioses/UVTV/CGDT/DEVIT/SVS/MS).

Nos trabalhos já realizados a eficácia do tratamento intralesional tem se revelado superior a 80%. “Isso não é pouco, uma vez que a literatura brasileira ressalta que a média nacional para o tratamento convencional fica em torno de 70%. O grande diferencial aparece mesmo em relação aos efeitos adversos. Enquanto que na alta dosagem o paciente sente sintomas mais agressivos, chegando a interromper o tratamento, no tratamento intralesional isso fica reduzido”, explicou Schubach. Devido a esse diferencial, a Organização Pan-americana de Saúde (Opas) passou a indicar o tratamento intralesional, embora restrito a centros de referência, por considerar que o nível de evidência científica para sua indicação em diferentes países ainda seja baixo. “O ideal é experimentarmos o tratamento intralesional em um número maior de pacientes pelo País. Vamos ver se a médio ou longo prazo se produzam evidências científicas que levem a novas mudanças. Como a Leishmaniose é uma doença que não mata, eu preferiria, como paciente, um remédio que não me gerasse tantos efeitos colaterais, mesmo que eficácia fosse menor”, ressaltou.

Ministério da Saúde adota tratamento intralesional

Após a Organização Mundial de Saúde (OMS) ter reconhecido o tratamento intralesional em 2010, a Opas passou a aceitá-lo em seu Manual sobre Leishmanioses publicado em 2013, mas com algumas restrições. Como o tratamento leva em consideração as experiências locais, as especificidades também devem ser respeitadas e valorizadas quando forem feitos os guias de cada país para esse tipo de tratamento. A partir de 2014, o Ministério da Saúde resolveu adotar o tratamento intralesional e convocou um grupo de especialistas do Brasil para discutir a questão.

O único grupo brasileiro que tinha experiência e pioneirismo nesse tipo de tratamento era o do INI/Fiocruz. Ao longo desses dois anos participamos de muitas discussões, fomos repassando nossa experiência com o tratamento e ajudando na redação final do Manual. A técnica que passará a ser adotada por todo o nosso Sistema de Saúde será a mesma desenvolvida no INI/Fiocruz com pequenas adaptações às recomendações da Opas. O novo Manual de Leishmaniose Tegumentar Americana deverá ser publicado, no mais tardar, até janeiro de 2017.

“Para que chegar ao texto final sobre o tratamento intralesional no Manual do Ministério, contamos muito com o trabalho da nossa mestranda Maria Cristina Duque. Até então, toda nossa experiência era proveniente dos trabalhos desenvolvidos no nosso Centro de Referência [INI], que conta com toda uma estrutura da Fiocruz em diagnóstico, tratamento e acompanhamento do paciente. Mas isso não é a realidade brasileira. Temos que pensar nacionalmente e Cristina utilizou essa metodologia pela primeira vez, em um posto de saúde em Minas Gerais", salientou o pesquisador. O texto final do Manual do Ministério da Saúde trará descrita a técnica aplicada no INI/Fiocruz, semelhante à utilizada por Cristina e será publicada também no exemplar de dezembro de 2016 da revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical.

Diferente da experiência acumulada no INI e baseada nas recomendações da Opas, o Manual do MS recomenda que a aplicação intralesional não deva ser feita em áreas de articulação ou na cabeça, em lesões maiores de três centímetros e não injetar mais de 5mL do medicamento na ferida. “Até hoje, nós não constatamos nenhum problema que justifique essas restrições. O tratamento sistêmico hoje permite ao médico fazer a injeção de 15mL na veia ou no músculo todo dia, durante 20 dias, totalizando 60 ampolas do medicamento para qualquer pessoa com peso acima de 60 kg. No caso de insucesso, o mesmo tratamento poderá ser repetido. No tratamento intralesional, realizamos de uma a três aplicações, que costumam variar de uma a quatro ampolas do medicamento, com intervalos de 15 dias, totalizando normalmente menos de 12 ampolas. No caso de insucesso, o mesmo tratamento poderá ser repetido. Mesmo que no tratamento intralesional o volume de uma aplicação possa ser superior a 15mL, por que não podemos fazer isso por via subcutânea a cada 15 dias, se a toxicidade ao antimônio é acumulativa e a dose total é bem inferior?", argumentou Armando.

Como o Ministério da Saúde vai adotar essa nova prática em todo o país, foi solicitado à equipe do LaPClinVigiLeish que participasse de uma capacitação para médicos de todas as regiões brasileiras na qual a técnica fosse apresentada. Em novembro, essa capacitação foi realizada no auditório do INI e contou com a presença de 19 médicos indicados pelo próprio MS. Esses profissionais serão os replicadores do conhecimento, através de treinamentos locais para que as unidades de saúde do País passem a adotar a técnica da injeção intralesional no tratamento da leishmaniose cutânea. “Quem já teve experiência com essa técnica não consegue enxergar porque tem que se fazer de outra maneira. Na verdade, temos que comprovar que é o contrário, que essa é a melhor. Quem usa fica tão mais tranquilo e vê que ela cura tão bem quanto a tradicional que não admite a possibilidade de expor o paciente ao risco do tratamento convencional”, afirmou o médico do INI/Fiocruz.

Eficácia e segurança do novo tratamento 

O trabalho de Maria Cristina Duque está sendo realizado em um município mineiro com 89 mil habitantes e com as condições de diagnóstico disponíveis na rede básica de saúde. “Lá eu só disponho do exame direto e do teste de Montenegro para fazer o diagnóstico. Não é como no INI/Fiocruz que faz a cultura, exame PCR e possui vários recursos para esclarecer o diagnóstico em casos duvidosos da doença. Mas essa é a realidade do Brasil, então, é importante mostrar que é possível fazer esse tipo de tratamento em qualquer unidade de saúde. Se existir alguma dúvida no diagnóstico e for necessário realizar um tratamento de prova (quando espera-se que a boa resposta ao tratamento confirme o diagnóstico), que se utilize um tratamento menos tóxico, como é o caso do tratamento intralesional da leishmaniose cutânea”, explicou a médica.

O projeto de mestrado Eficácia e Segurança do Tratamento da Leishmaniose Cutânea com Antimoniato de Meglumina Intralesional na Unidade de Saúde Primavera, Timóteo, MG (2015-2017) teve início em dezembro de 2015. Até julho de 2016, foram incluídos 31 pacientes já avaliados quanto à resposta terapêutica inicial e à ocorrência de reações adversas ao tratamento. Os pacientes continuarão em observação por mais um ano para que se verifique a cura total das lesões cutâneas e se comprove que não houve algum acometimento na mucosa, uma das consequências da doença.

“Nos meus 31 pacientes, 29 estavam dentro das contraindicações da Opas, então só poderia ter tratado dois deles, o que não foi o caso. Eu obtive mais de 80% de boa resposta no tratamento, os efeitos adversos encontrados foram leves ou moderados e ninguém teve que interromper a medicação. A terapia que adotei, seguindo orientações do INI, foi uma injeção do remédio, a cada 15 dias. O volume injetado dependia do tamanho da lesão do paciente. No meu trabalho, eu estipulei 3 aplicações do medicamento em todos os pacientes. No INI, quando a lesão começa a cicatrizar, eles param, mesmo que seja após uma única aplicação. Com as três aplicações, obtive 64% de boa resposta. Entretanto, cheguei a cinco injeções em poucos pacientes e, desta forma, alcancei o índice de 84% de cura”, apontou.

Nova técnica reduz custos para o Sistema

Além de ser mais segura para os pacientes, a metodologia do INI/Fiocruz torna o tratamento mais econômico do que o preconizado atualmente e isso certamente representará redução de gastos para o sistema de saúde brasileiro. No tratamento convencional é ministrada uma ampola com 5mL do medicamento para cada 20 kg no peso do paciente, com limite máximo de três ampolas diárias. Ou seja, acima de 60 kg, a pessoa toma três ampolas de antimoniato de meglumina por um período de 20 dias, totalizando 60 ampolas. “Nós fazemos, em média, três aplicações intralesionais e, em cada aplicação, dificilmente ultrapassamos quatro ampolas. É exatamente o mesmo medicamento, só mudando a quantidade e a via de aplicação”, informou Armando.

Outro ponto destacado pelo médico diz respeito à monitorização de efeitos adversos. São indicados, em média, quatro exames no paciente durante o tratamento convencional. Um antes de começar, dois durante, e um no final. Quando o paciente sofre um efeito adverso no tratamento convencional tem que parar a medicação, fazer novas consultas e exames para monitoramento até a normalização da sua saúde. Os efeitos adversos são muito comuns na alta dosagem, podendo apresentar-se em mais de 70% dos casos. “No caso do tratamento intralesional, os efeitos adversos são muito poucos, de leves a moderados, permitindo um monitoramento um pouco mais brando do paciente, com segurança. Consideração a menor quantidade de medicação e, possivelmente, de exames, o tratamento intralesional será uma economia para o nosso já combalido sistema de saúde”.

Números da Leishmaniose tegumentar no INI e Brasil

Desde 2005 a Leishmaniose tegumentar está apresentando uma retração no número de casos em todo o país. Especificamente no INI/Fiocruz, entre 2004 e 2006, a unidade atendia mais de 100 pacientes ao ano dos cerca de 300 casos notificados em todo o Estado do Rio de Janeiro. Atualmente, atende em torno de 20 pacientes de um total inferior a 50 casos anuais notificados no Estado. “Houve uma queda grande e isso está se mantendo no Brasil inteiro. Nos últimos 10 anos, o número de casos estava em torno de 30 mil casos anuais desde os anos 1990 e baixou para menos de 20 mil a partir de 2015, segundo informações do Ministério da Saúde. Entretanto, temos que lembrar que nas décadas de 40 a 60, a doença era considerada praticamente extinta no país, mas na década de 70 ressurgiu. Não podemos precisar como será o futuro”, ponderou Schubach.

Maria Cristina Duque revela que na região onde vem realizando seu estudo, os números não diminuíram. “Essa queda no Brasil não se refletiu onde trabalho, tanto que de dezembro/15 a julho/16 eu inclui 31 pacientes, mais do que o INI no ano inteiro”, afirmou.

“Durante a capacitação do MS, isso também foi relatado por médicos que atuam em outras regiões como o estado do Piauí, onde há um aumento da doença também. Ou seja, de alguma maneira a Leishmaniose está caindo em números gerais pelo Brasil, mas aumentando em determinadas regiões e se expandindo geograficamente. Alguma coisa relacionada ao equilíbrio natural da doença está acontecendo, mas que ainda não podemos precisar o que é. A certeza é que não ocorreu por nenhuma ação específica da Saúde Pública”, informou Armando.

História por trás da inovação

A medicação usada hoje em dia no Brasil é o antimoniato de meglumina, cujo composto principal é o antimônio, um metal pesado, na sua espécie pentavalente. Os antimoniais foram introduzidos no tratamento da leishmaniose tegumentar, em 1914, por Gaspar Vianna, médico que dá nome ao pavilhão hospitalar do INI/Fiocruz. Na época, ele utilizou o tártaro emético, um composto a base de antimônio trivalente, bem mais tóxico que o antimoniato de meglumina utilizado atualmente. Devido a essa característica, alternativas foram sendo buscadas ao longo de décadas de trabalho com a doença e os antimoniais trivalentes foram substituídos pelos compostos pentavalentes a partir da década 40.

A Leishmaniose tegumentar é uma doença negligenciada e não conta com um protocolo específico para tratamento universalmente aceito, como ocorre no HIV/Aids, por exemplo. Até hoje, explica Armando, não existe um consenso sobre os critérios de cura nem se sabe muita coisa a respeito dos antimoniais, como sua curva de farmacocinética ou qual a melhor dose e tempo de administração. Não há interesse da indústria em fazer ensaios clínicos e aperfeiçoar a medicação. “Na prática há muita experiência acumulada, mas em uma base científica frágil porque são experiências individuais e em diferentes lugares do mundo”, afirmou.

Essa metodologia de injeção intralesional do INI é resultado de um trabalho que começou na década de 80, com o Manoel Paes, a partir de relatos desse tratamento no Oriente Médio, onde não existe a forma mucosa. O médico acompanhou alguns pacientes em um surto que havia ocorrido em Mesquita, perto de Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro. Entre os casos estudados estavam um senhor idoso que não saia de seu sítio, uma paciente psiquiátrica, uma mãe com muitos filhos e ele percebeu que não conseguiria tratar a todos da forma recomendada. O Manoel Paes foi até essa região endêmica e passou a ministrar a infiltração intralesional nas feridas. Mais de cinco anos depois, quando o então mestrando Armando Schubach começou a trabalhar com ele no INI, retornou à região e viu que todos os pacientes estavam curados, dando início a esta prática no Instituto.

“Depois que constatamos que funcionava, começamos a utilizar a técnica como tratamento de rotina, mas só publicamos os resultados em 1997, já com mais de 10 anos de seguimento dos primeiros pacientes tratados, para nos assegurar que nenhum deles havia desenvolvido a forma mucosa. Na época fomos muito criticados porque a comunidade científica não acreditava que era verdade, até que, em 2010, a OMS passou a ter o mesmo discurso que a gente. Admitiu que os tratamentos locais, menos tóxicos, deveriam ser priorizados, pois a Leishmaniose é uma doença que não é letal, sua forma mucosa não aparece em todo mundo, a frequência é pequena e quando aparece é tratável”, salientou Armando.

“O remédio é muito tóxico e o tratamento necessita ser monitorado cuidadosamente. Todo ano, no Brasil, ao analisarmos a notificação de óbitos por leishmaniose, percebemos que mais de uma centena de pessoas perdem a vida por uma doença que não mata. Ou seja, provavelmente o tipo de tratamento está envolvido. Por isso resolvemos priorizar um tratamento menos tóxico e menos agressivo, sempre resguardando a segurança do paciente e após mais de 30 anos de estudo, percebemos que estamos no caminho certo”, concluiu.

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