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20/12/2012

Seminário aposta em experiências internacionais para repensar a política de drogas brasileira

Marina Campos, Ricardo Valverde e Viva Rio


Teve início na segunda-feira (17/12) o seminário Saúde e Política de Drogas: É Preciso Mudar, organizado por Viva Rio, Comissão Brasileira sobre Drogas e Democracia (CBDD) e Fiocruz. A aberura, no Museu da Vida da Fundação, contou com a participação do secretário de Saúde do Estado do Rio de Janeiro, Sérgio Côrtes, do diretor do Viva Rio, Rubem César Fernandes, do presidente da CBDD e da Fiocruz, Paulo Gadelha, e de especialistas do Brasil e de outros países. O secretário de Saúde, o primeiro a intervir, lembrou que a discussão sobre as drogas ainda está mais vinculada à esfera da segurança do que da saúde, porque o uso do crack, droga que potencializou a preocupação e a discussão sobre o tema, está muito associado à violência na sociedade. "No entanto, outras drogas, inclusive algumas lícitas, como o álcool, trazem tantos ou ainda mais danos à sociedade. O crack não é o único problema que precisamos enfrentar dentro da temática das drogas, mas devemos aproveitar a agenda do Ministério da Saúde e do governo federal para discutir o tema das drogas como um todo e trazer para o debate a saúde mental e a assistência básica, para pensar melhores maneiras de enfrentar o problema e acolher o usuário”, comentou Côrtes.


 O diretor do Viva Rio, Rubem César Fernandes, o presidente da Fiocruz, Paulo Gadelha, e o secretário de Saúde, Sérgio Côrtes, na abertura do seminário (Foto: Peter Ilicciev)

O diretor do Viva Rio, Rubem César Fernandes, o presidente da Fiocruz, Paulo Gadelha, e o secretário de Saúde, Sérgio Côrtes, na abertura do seminário (Foto: Peter Ilicciev)





O presidente da Fiocruz e da CBDD, Paulo Gadelha, defendeu que o tema das drogas deve ser pensado de maneira holística, integrando diferentes atores da sociedade. “As experiências no Brasil e no mundo mostram que é preciso mudar, deslocar a abordagem do tema para a área da saúde. Manter a discussão exclusivamente na esfera da segurança é ruim para a polícia, para o usuário e para a sociedade como um todo. Se não tivermos a disposição para envolver a sociedade como um todo neste debate, não conseguiremos abordar o tema de maneira clara, transparente e desassombrada”.


Segundo Gadelha, “a saúde não pode ser tímida no debate sobre as drogas. A discussão passa pela questão da legislação e os profissionais do setor precisam participar ativamente deste debate e se envolver com outras áreas”.  Gadelha lembrou o caso da estratégia de redução de danos em relação ao HIV, no qual o Brasil é referência mundial. “Temos uma tradição muito forte no campo da saúde de enfrentar questões complexas. Precisamos lembrar que as nossas representações e decisões sobre o que é certo ou errado, o que deve ser proibido ou não são escolhas políticas e que, no caso das drogas, não há evidências científicas que mostrem quais drogas devem ser ilícitas e quais podem ser lícitas”. Ele citou o exemplo do álcool: “Apesar de ser uma droga lícita, o álcool é responsável por muito mais casos de mortes, acidentes de trânsito, aposentadorias, internações e violência do que drogas consideradas ilícitas”.



O diretor do Viva Rio, Rubem César Fernandes, afirmou que, apesar de no Brasil e em outros países da América Latina a questão criminal dominar as discussões sobre drogas e acabar ofuscando a área da saúde, devido à associação das drogas à violência na região, esse cenário começa a mudar. “Já estamos em um processo de mudança. Com a experiência das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) no Rio de Janeiro, por exemplo, a saúde começa a entrar no debate e absorver a demanda de atenção. Os desafios são vários. O apoio da saúde pública ao setor privado e às comunidades terapêuticas é um deles. O maior de todos os desafios é a transferência do debate do sistema penal para a saúde. Mas não basta uma mudança da lei, é preciso uma mudança de cultura, de espírito, de abordagem”.


Em seguida às intervenções iniciais, ocorreu o Painel Mundo – a experiência de quem já fez, que contou com a moderação de  Pedro Gabriel Delgado, ex-coordenador da Área Técnica de Saúde Mental do Ministério da Saúde e foi aberto pelo vice-ministro da Educação e Cultura do Uruguai, Oscar Gómez da Trindade. O vice-ministro explicou o novo programa de regulação da cannabis que está sendo implantado no país: “Uruguai é um país privilegiado para ser piloto dessa experiência, pelo seu tamanho e condições geográficas, temos apenas 3,5 milhões de habitantes. Tem que se diferenciar, todas não podem ser tomadas da mesma maneira: álcool, pasta-base, cannabis. A cannabis é responsável por 80% do mercado ilegal no país”. A nova proposta visa obter o controle da produção da cannabis (a cargo do Ministério da Agricultura) e montar pontos de venda organizados. “Não queremos permitir que o narcotráfico continue controlando os jovens. Não promovemos o uso da cannabis, estamos regulando”, acrescenta Gómez. “Há um firme propósito do governo do Uruguai de proteção à saúde, gestão de riscos e diminuição de danos”.


 Pedro Gabriel Delgado, Paula Marques e Oscar Gómez da Trindade, que participaram do <EM>Painel Mundo<BR><br />
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Pedro Gabriel Delgado, Paula Marques e Oscar Gómez da Trindade, que participaram do Painel Mundo

(Foto: Viva Rio)


A representante do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências de Portugal (Sicad), Paula Marques, apresentou a experiência da “nação inspiradora” do Brasil para repensar a política de drogas. Além de ser baseado nas vertentes da prevenção, tratamento, reinserção, redução de danos e dissuasão, o modelo português de descriminalização, adotado há mais de dez anos, baseia-se nos princípios do humanismo e do pragmatismo.



O ponto principal, de acordo com Paula, é considerar o dependente um doente, e não um criminoso. “A partir daí é possível a abertura à inovação, a libertação de dogmas e ideias preconceituosas. Mas para isso é necessário ter a ousadia de adotar medidas como a distribuição de seringas e metadona nas farmácias, a fim de reduzir os danos”, explicou. Os bons resultados, ressaltou, devem-se a uma reorientação estratégica e a um conjunto de respostas integradas: “Trata-se de uma política de grandes investimentos da sociedade como um todo, tanto do governo como de organizações não governamentais, por exemplo. E é uma medida que só tem mostrado resultados positivos porque acreditamos que era possível mudar e manter a mudança”.


A experiência do Canadá foi apresentada por Benedikt Fischer, do Centre for Addiction and Mental Health, de Toronto. Ele mostrou que, no seu país, o maior problema são as drogas injetáveis, sempre associadas a danos intensos, e que o crack vem aumentando muito nos últimos anos. “Nos preocupa bastante o uso dessa droga porque usuários de crack têm características distintas em relação a riscos sociais e de saúde, são mais marginalizados, a maioria é morador de rua”, comentou. Diferente do Brasil, no Canadá ocorre um poli-uso, ou seja, os usuários de crack comumente também utilizam drogas injetáveis.



Fischer falou sobre uma das iniciativas lançadas nos anos 90, o Safer Crack Smoking Kit, um kit com utensílios para uso da droga de forma segura, distribuído aos usuários. “Foi bem simples, mas bastante importante. Dar a eles uma ferramenta para usar o crack, onde não usariam material não seguro, como vidro quebrado, e para que eles não tivessem que cometer ainda mais crimes ou disputar com outro usuário o cachimbo quando quisessem usar o crack. Houve muita resistência. Muitos políticos viam essa intervenção como algo que o governo estava ajudando as pessoas a usarem drogas, comparavam ao Armageddon, ao fim do mundo. Óbvio que não é assim, essa atitude não é ajudar a se usar o crack, é manter os usuários o mais saudável possível – e manter vidas, em primeiro lugar”. A opinião geral da população foi mudando quando se começaram a sentir os efeitos positivo dessa iniciativa, como diminuição do crime.



O palestrante também contou sobre um projeto relacionado a drogas injetáveis que foi controverso até internacionalmente: o Insite, local onde usuários podem ir injetar as drogas de forma segura. Há apenas um no Canadá, em Vancouver. “A ideia é criar um ambiente calmo e seguro, há enfermeiros no local – que não ajudam a injetar, mas estão lá para ajudar caso haja algum problema. Há quase dez anos está sendo usado e nunca houve uma overdose no lugar”, disse. Essa iniciativa reduziu, além de mortalidade por overdose, problemas de ordem pública relacionados ao uso de drogas injetáveis. Fischer ressaltou que as medidas sobre o uso de crack devem ser tomadas não baseadas em ideologias, mas sim em evidências científicas.


 O seminário, que atraiu dezenas de profissionais que atuam junto a usuários de drogas, lotou o auditório do Museu da Vida da Fiocruz (Foto: Peter Ilicciev)

O seminário, que atraiu dezenas de profissionais que atuam junto a usuários de drogas, lotou o auditório do Museu da Vida da Fiocruz (Foto: Peter Ilicciev)


O assessor em Saúde Mental do Ministério da Saúde, Aldo Zaiden, moderou a segunda mesa do seminário, Painel Brasil: as experiências locais. Zaiden comentou que no Congresso Nacional há projetos de lei em relação a drogas com abordagens diferentes e até opostas. Destacou a importância o projeto proposto pela Comissão Brasileira sobre Drogas e Democracia (CBDD), avançado do ponto de vista penal e de tratamento, mas que há, no mesmo Congresso, projetos que propõem o endurecimento da questão penal e até alguns que repropõem a prisão de usuários. Zaiden também falou sobre a intenção de realizar uma conferência nacional de políticas sobre drogas, já proposta pelos ministérios da Saúde e da Justiça, convocando uma ampla discussão sobre o tema. “Queremos nos juntar às discussões contemporâneas sobre drogas na América Latina e que se possa produzir massa crítica para uma conferência nacional”, acrescentou Zaiden.


O professor da Unifesp e membro do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad), Dartiu Xavier, falou sobre experiências no tratamento de usuários do crack e sobre estratégias de redução de danos. Alguns paradigmas da redução de danos são evitar o envolvimento com a droga; caso haja envolvimento, evitar que se torne abuso; ajudar a abandonar a dependência; orientar para um uso menos prejudicial possível; ou seja, promoção da saúde. “Pensando só em abstinência, você não ajuda a maioria, pois a ineficácia dos tratamentos contra dependência é grande, de 65%, então se pode usar a redução de danos”, afirma.



No âmbito do tratamento, Xavier falou sobre uma experiência exitosa de redução de danos, o uso de cigarros de cannabis para diminuir sintomas da abstinência do crack. Participaram 50 pacientes com dependência pesada do crack, dos quais 16% abandonou o tratamento, mas 68% interrompeu o uso de crack, fumando em torno de 3 a 4 cigarros de cannabis por dia e, depois de seis meses de abstinência do crack, todos também abandonaram a maconha espontaneamente. Xavier ressalta que, do ponto de vista de pesquisa, essa experiência não é válida por causa da amostragem, mas o resultado foi extremamente positivo.


Daniel Souza, coordenador do Consultório de Rua do Jacarezinho, falou sobre a criação e experiências do consultório. Atualmente, há 3 consultórios de rua no Rio de Janeiro, que visam proporcionar atenção à saúde e proteção a pessoas em situação de rua. O consultório do Jacarezinho agora conta com profissionais de diversas áreas, como enfermeiro, musicoterapeuta, médico, psicólogo e agente comunitário. Daniel conta que o trabalho com o consultório de rua surte mais efeito do que simplesmente abordar as pessoas em situação de risco conversando e indicando onde ir para receber atendimento, pois a maioria acabava não buscando o serviço. Com a equipe itinerante do Consultório de Rua, os profissionais vão até as pessoas, gerando mais adesão ao tratamento. O trabalho tem como base a Clínica da Família, explica Souza: “Temos a Clínica da Família como quartel-general, é lá onde fazem os atendimentos, os exames laboratoriais”. Segundo Daniel, o consultório do Jacarezinho tem 279 usuários cadastrados, 90% das demandas que surgem são para cuidados clínicos imediatos e de assistência social e 83% usam só crack.


Na quarta-feira (18/12) os participantes foram divididos em seis grupos de trabalho para debater diferentes aspectos relacionados ao atendimento do usuário nos três níveis de atenção à saúde: primário (com foco na promoção, prevenção e reabilitação da saúde), secundário (mais especializado e de maiores níveis tecnológico e de complexidade) e terciário (de alto nível tecnológico e de complexidade). No final do encontro, os grupos de trabalho se reuniram para elaborar um relatório com propostas para a construção de novas práticas de saúde e que será encaminhado às autoridades municipais, estaduais e federais da saúde.


Publicado em 18/12/2012.

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