07/07/2009
Fernanda Marques
Durante o Simpósio Internacional Comemorativo do Centenário da Descoberta da Doença de Chagas, as perspectivas de erradicação desta enfermidade serão discutidas por uma das mais importantes autoridades no assunto do país, o pesquisador João Carlos Pinto Dias. O simpósio acontece de 8 a 10 de julho no Hotel Sofitel, em Copacabana, no Rio de Janeiro. Médico especializado em doenças infecciosas e parasitárias, com mestrado e doutorado em medicina tropical, está à frente do Posto Avançado de Estudos Emmanuel Dias, ligado ao Laboratório de Biologia de Triatomíneos e Epidemiologia da Doença de Chagas do Centro de Pesquisa René Rachou, unidade da Fiocruz em Minas Gerais. Filho de Emmanuel Dias (1908-1962) – protagonista das primeiras campanhas para erradicar a doença de Chagas do país, destacando-se nas pesquisas sobre a epidemia na cidade de Bambuí (MG), na década de 1940 –, João Carlos levou adiante o legado do pai: deu continuidade aos estudos em Bambuí, onde, atualmente, a infestação pelo barbeiro é zero, e segue com um trabalho rigoroso de vigilância epidemiológica. Em entrevista à Agência Fiocruz de Notícias, ele adianta algumas das principais questões que serão abordadas em sua palestra, que será realizada no dia 8, às 17h45.
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O pesquisador João Carlos Pinto Dias, da Fiocruz Minas (Foto: Peter Ilicciev/CCS) |
Agência Fiocruz de Notícias (AFN): No Brasil, a transmissão da doença de Chagas por transfusão de sangue e pelo vetor Triatoma infestans foi controlada no Brasil. O que é preciso para que ela permaneça sob controle? Um trabalho contínuo de vigilância?
João Carlos Pinto Dias (JCPD): Há uma certificação neste sentido, pela Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), em 2006, baseada em profunda análise de dados primários e secundários. Em saúde pública, trabalhamos com tendências e análises probabilísticas, sob enfoque multifatorial. Hoje temos mais de 99% do sangue controlado e menos de 0,4% de candidatos à doação soropositivos, configurando uma possibilidade baixíssima de transmissão transfusional, mesmo quando se leva em conta as limitações da sorologia disponível e o mínimo risco de que um doador infectado não tenha seu sangue analisado. Este quadro oportuniza, segundo especialistas, uma incidência possível de até oito ou dez casos novos anuais, o que está muito abaixo dos 15 mil casos estimados para o fim da década de 1980. Sobre o Triatoma infestans, a situação segue muito boa, sem detecção de focos nos últimos anos, nas áreas de maior risco de residualidade. Eventuais focos podem, no entanto, aparecer, devendo ser prontamente detectados e eliminados mediante rigorosa vigilância. O restabelecimento de grandes colônias a curto ou médio prazo é hoje altamente improvável. A chave deste futuro é, obviamente, a continuidade e a qualidade da vigilância epidemiológica, no caso dos vetores fundamentalmente centrada nos municípios e sob rigorosa supervisão estadual.
AFN: Contudo, a transmissão da doença de Chagas ainda ocorre no país por meio de outras espécies de barbeiros e também por vias alternativas, como a ingestão de alimentos contaminados. É possível controlar essas outras formas de transmissão? Como?
JCPD: A incidência registrada de transmissão é também muito reduzida. Registra-se, ultimamente, uma média de 80 a 100 casos novos anuais, em contraste com os mais de 80 mil anuais estimados em 1979. Dos casos atuais, 90% se referem à região amazônica, em sua maioria no Pará, ligados a surtos de provável transmissão oral. Sobre as espécies secundárias dos triatomíneos, elas existem no meio ambiente, principalmente ligadas a aves, podendo, eventualmente, invadir casas ou anexos peridomésticos (principalmente galinheiros). Esta é uma situação permanente, a demandar contínua vigilância. Se insetos invasores forem prontamente detectados pelos moradores e os sistemas municipais forem eficientes em atender às notificações, não haverá formação de colônias domiciliares e a transmissão da doença será virtualmente eliminada. Os poucos casos agudos teoricamente possíveis, nessas circunstâncias, deverão ser diagnosticados e tratados especificamente, com elevadíssima probabilidade de cura. Igualmente, os cada vez mais raros casos congênitos, de transmissão de mãe para filho (menos de 1% de risco no Brasil, com forte tendência ao decréscimo), deverão ser diagnosticados (sorologia convencional aos oito meses de idade) e tratados especificamente. Para os casos de transmissão oral, não há prevenção primária disponível, sendo a melhor estratégia sua detecção e tratamento imediato, como para outros casos agudos. As pessoas de contato destes casos devem ser também examinadas (pesquisa do parasito para as pessoas febris e sorologia convencional concomitante, com repetição um mês depois).
AFN: E quanto à circulação do parasito em âmbito silvestre? Como evitar que ela afete os seres humanos?
JCPD: É uma situação permanente e natural. O risco de transmissão ocorre por invasão eventual de residências pelo inseto e também por eventuais entrada e permanência do homem em ecótopos silvestres. Barbeiros domiciliados ou invasores devem ser capturados; a casa deve ser vistoriada e, quando pertinente, expurgada com o inseticida apropriado. Ecoturismo, expedições e manobras militares em ambiente silvestre poderão resultar em eventuais casos agudos, que devem ser tratados conforme dito anteriormente. Construções de casas em ambiente florestal devem prever certo afastamento e, em casos de risco, proteção com telas e similares.
AFN: Diante desse cenário, existe alguma perspectiva de erradicação da doença de Chagas?
JCPD: Erradicar, no sentido absoluto, nunca, pois o parasito circula há milênios no ciclo silvestre. O controle da transmissão é possível e viável na maioria das situações habituais, por meio de correta seleção nos bancos de sangue e continuada vigilância sobre as habitações humanas. Os resíduos de transmissão congênita tendem a extinguir-se, pois, com o controle da transmissão transfusional e vetorial, cada vez existem menos mulheres infectadas na idade fértil. Casos agudos esporádicos ocorrerão, ainda, por via oral e mesmo por via vetorial, estes últimos em bolsões de pobreza rural e em lugares onde as atividades de vigilância foram descontinuadas.
Publicado em 07/07/2009.