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11/11/2011

Somos o que comemos e comemos o que somos

Fernanda Marques


Programas de culinária; best-sellers sobre dietas para emagrecimento; documentários de viajantes sobre as cozinhas exóticas de outros países; o contraste entre o desperdício de comida, de um lado, e a fome, de outro: o tema da alimentação está na ordem do dia. “A alimentação constitui uma espécie de ‘janela com vista’ através da qual se pode observar, conhecer e procurar compreender a articulação de um emaranhado cultural mais amplo”: é a partir desta perspectiva que Jesús Contreras e Mabel Garcia, cientistas sociais com experiência de ensino e pesquisa em antropologia e sociologia, desenvolvem suas análises em Alimentação, Sociedade e Cultura, livro originalmente lançado na Espanha, em 2005, que ganha agora sua edição brasileira, com o selo da Editora Fiocruz.



Ao contrário do que muitos imaginam, a nutrição não é uma disciplina restrita às biociências: ela tem envolvimento com todas as ciências humanas – afinal, comer é uma necessidade fisiológica, mas também um fato social. “Aparentemente, para a medicina e para a nutrição, o ser humano se ‘nutre’ apenas de glicídios, lipídeos e protídeos, mas o certo é que os alimentos, além de nutrir, ‘significam’ e ‘comunicam’. O desejo de encontrar esses significados é a razão principal deste livro”, explicam Contreras e Garcia. Na obra, os autores cumprem o objetivo de colocar em relevo e discutir no âmbito acadêmico “temas previamente desestimados pelo escasso interesse em casar o pensamento científico com elementos aparentemente tão desimportantes como um prato de legumes ou uma técnica de fazer conservas”.


É fácil reconhecer que os homens produzem, distribuem e conservam os alimentos de modos peculiares, que os diferenciam de outros animais. No entanto, Alimentação, Sociedade e Cultura não apresenta uma concepção dualista entre natureza e cultura. Pelo contrário: “no ato da alimentação, o ser humano biológico e o ser humano social estão estreitamente vinculados e reciprocamente envolvidos”, afirmam Contreras e Garcia. Ou seja: a alimentação é um ato pluridimensional condicionado à nossa realidade biológica e psicossocial.


As discussões do livro se inserem, especialmente, no campo da antropologia da nutrição, “que se ocupa do estudo das práticas e representações alimentares dos grupos sociais em uma perspectiva comparativa e holista, centrada nos fatores materiais e simbólicos que influenciam os processos de seleção, produção, distribuição e consumo de alimentos, assim como suas formas de preparação, conservação ou serviço e tendo em conta, ao mesmo tempo, que existem condicionantes de caráter ecológico, econômico, cultural, biológico e psicológico que interagem entre si e devem ser considerados a cada momento”.


Preparar os alimentos pode ser um ritual na cozinha e comê-los, uma celebração na mesa. Os alimentos também podem ser associados a prescrições e proibições tradicionais e religiosas, como a velha máxima de que manga com leite faz mal e, para os católicos, a norma de não comer carne na Sexta-Feira Santa. Os aspetos culturais da alimentação incluem, ainda, os diferentes usos e categorizações dos alimentos, bem como a ordem, a composição, o horário e o número de refeições diárias. Como um fenômeno típico da cultura humana, alimentar-se também assume características diferenciadas de acordo com a época e o lugar.


Alimentação, Sociedade e Cultura reúne experiências e reflexões de autores europeus, mas também revela caminhos para a compreensão de cenários variados. Entre as muitas lições que podem ser aproveitadas por estudiosos brasileiros, destacam-se as abordagens diferenciadas da alimentação, que não ficam restritas a métodos estatísticos ou quantitativos. “Nossa proposta metodológica defende o recurso etnográfico como aquele que, em primeira instancia, mas não em única, permite observar, descrever e interpretar de forma pormenorizada e contrastada a articulação dos diferentes fatores que se encontram em torno das maneiras de comer”, dizem os autores.


Na nota à edição brasileira, as pesquisadoras Denise Oliveira e Silva e Maria do Carmo Freitas, coordenadoras da Rede Interinstitucional de Alimentação e Cultura (Rede A&C), lembram que, no país, o problema da fome gerou estudos epidemiológicos e ações políticas, econômicas e sociais para a superação do problema. No entanto, na medida em que essas ações foram planejadas sem levar em conta os aspectos culturais da alimentação, elas produziram resultados limitados. Isso demonstra, segundo as pesquisadoras, a importância de novas abordagens que considerem os elementos simbólicos e culturais relacionados à alimentação.


O jeito como uma pessoa se relaciona com os alimentos diz muito sobre o contexto cultural do qual ela faz parte: classe social, idade, gênero, identidade ou grupo étnico determinam opções e preferências alimentares. “Comemos aquilo que nos faz bem, ingerimos alimentos que são atrativos para os nossos sentidos e nos proporcionam prazer, enchemos a cesta de compras de produtos que estão no mercado e nos são permitidos por nosso orçamento, servimos ou nos são servidas refeições de acordo com nossas características: se somos homens ou mulheres, crianças ou adultos, pobres ou ricos. E escolhemos ou recusamos alimentos com base em nossas experiências diárias e em nossas ideias dietéticas, religiosas ou filosóficas”, resumem Contreras e Garcia. Segundo os autores, observar as práticas alimentares revela o funcionamento de uma sociedade. “Conhecendo onde, quando e com quem são consumidos os alimentos, temos condições de deduzir, pelo menos parcialmente, o conjunto das relações sociais que prevalecem dentro dessa sociedade”, garantem.


Publicado em 11/11/2011.

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