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05/12/2007

Tese de doutorado investiga a prática farmacêutica na época do Império

Catarina Chagas


Cursos superiores, industrialização de medicamentos e legislação reguladora passavam longe da formação e da prática cotidiana da maioria dos farmacêuticos brasileiros do século 19. Na época o preparo de remédios era, antes de tudo, uma arte, praticada no interior das boticas. A esses profissionais coube lutar para que a prática fosse reconhecida como ofício devidamente ensinado em curso superior e exercido exclusivamente por pessoas capacitadas. Assim narra a historiadora Verônica Pimenta Velloso em sua tese de doutorado recém-defendida na Casa de Oswaldo Cruz (COC) da Fiocruz e orientada pela pesquisadora Maria Rachel Fróes da Fonseca.


 Cena da ópera <EM>Elixir do amor</EM>, que também foi estudada durante o desenvolvimento da tese (Foto: Escola de Música da Universidade de Indiana)

Cena da ópera Elixir do amor, que também foi estudada durante o desenvolvimento da tese (Foto: Escola de Música da Universidade de Indiana)


Até 1828 o título de farmacêutico era concedido pela Fisicatura Mor do Império, órgão herdado da metrópole portuguesa. Os candidatos eram avaliados por meio de um exame ao qual eles podiam se submeter após oito anos de prática numa botica, sob a orientação de um mestre boticário. Em 1832, com a criação do curso farmacêutico vinculado às faculdades de medicina, a titulação era obtida mediante a realização de um curso de três anos somado à prática de igual período numa botica.


Para desvendar o desenrolar dessa história, Verônica usou como principais fontes os periódicos de duas associações pioneiras de profissionais do ramo localizadas no Rio de Janeiro, então capital do Brasil: a Sociedade Farmacêutica Brasileira, criada em 1851, e o Instituto Farmacêutico do Rio de Janeiro, inaugurado em 1858. Neles, encontrou não só o relato das reuniões quinzenais de farmacêuticos – em que eram discutidas questões sobre novos medicamentos e plantas medicinais, estratégias de lutas pelo reconhecimento da profissão e denúncias do exercício ilegal da farmácia –, como biografias de profissionais importantes na área e notícias sobre as atividades desenvolvidas em todo o Império.


 Periódico da Sociedade Farmacêutica Brasileira que circulou entre os anos de 1862 e 1864. Entre 1851 e 1856 foi impresso com o nome de <EM>Revista Pharmaceutica</EM>

Periódico da Sociedade Farmacêutica Brasileira que circulou entre os anos de 1862 e 1864. Entre 1851 e 1856 foi impresso com o nome de Revista Pharmaceutica


“Essas associações tinham como objetivo demarcar o espaço dos farmacêuticos no universo da cura”, conta a pesquisadora. “Elas brigavam pela elaboração de um código farmacêutico brasileiro, contra o exercício ilegal da farmácia e por um ensino farmacêutico independente das faculdades de medicina”.


Além das associações brasileiras, o estudo abrange a Sociedade Farmacêutica Lusitana e seus periódicos: Verônica passou seis meses em Lisboa a fim de avaliar os intercâmbios que se deram entre as associações. “Foi interessante perceber como o Brasil, mesmo depois da independência, ainda era visto pelos farmacêuticos e médicos portugueses como um prolongamento de Portugal na área da farmácia”, ressalta. “A flora brasileira, principalmente das regiões Norte e Nordeste brasileiros, ainda interessava nossos antigos colonizadores”.


Das prateleiras aos palcos


Ao explorar a documentação da época sobre as atividades farmacêuticas, a historiadora deparou-se com referências menos tradicionais, como trabalhos literários e artísticos. Em jornais da época, por exemplo, encontrou textos que se referiam aos charlatões que se faziam passar por “doutores Dulcamaras”, numa referência à ópera Elixir do amor, do italiano Donizetti, apresentada no Rio de Janeiro em 1846. Na encenação, o protagonista enganava os consumidores oferecendo vinho como poção mágica e acabou virando ícone dos charlatões, para os farmacêuticos e médicos da época.


 Recorte de anúncio publicado no <EM>Almanak Laemmert</EM> (1870) de estabelecimento que pertenceu ao boticário Ezequiel Corrêa dos Santos, que presidiu a Sociedade Farmacêutica Brasileira de 1851 a 1864

Recorte de anúncio publicado no Almanak Laemmert (1870) de estabelecimento que pertenceu ao boticário Ezequiel Corrêa dos Santos, que presidiu a Sociedade Farmacêutica Brasileira de 1851 a 1864


“Outra curiosidade é que dulcamara é o nome de um remédio utilizado na Idade Média como ungüento de feiticeiras, o que reforçou a idéia negativa do nome do personagem”, explica Verônica. “Naquela época, os farmacêuticos das associações rejeitavam em seus discursos os sentidos sagrados ou mágicos que pudessem ser atribuídos às suas práticas, orientando-se por uma concepção racional da ciência”.


A pesquisadora também recorreu ao romance Eusébio Macário (1879), do autor português Camilo Castelo Branco, no qual o personagem principal era um boticário que rejeitava a prática da farmácia considerada moderna. Suas práticas incluíam o uso de baratas fritas e torradas como medicamentos. “Esta imagem foi utilizada por um autor da historiografia tradicional da farmácia brasileira, José Coriolano de Carvalho, para afirmar o atraso de Portugal, sob o ponto de vista farmacêutico no século 19. Para ele, o Brasil teria herdado esse atraso”, aponta. No entanto, Verônica questiona esta visão e enfatiza a circulação de saberes que se deu entre Brasil, Portugal e outros países europeus, sobretudo França e Inglaterra.

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